Quando o muro caiu, a vida de Tomas desabou

Um casal perdeu tudo o que tinha quando caiu um muro na Damasceno Monteiro, em Fevereiro. Ao refazer o prédio, a câmara deixou-lhes a casa inacabada. E ainda não puderam activar o seguro.

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Tomas Buteler mostra como a casa era antes do acidente. As clarabóias desapareceram, a parede ao fundo está com o cimento à mostra Mário Lopes Pereira
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A 27 de Fevereiro, o muro por trás dos prédios ruiu LUSA/TIAGO PETINGA
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O número 108D da Damasceno Monteiro, onde parou o Open House do ano passado Mário Lopes Pereira
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O espaço actual, despido Mário Lopes Pereira
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Tomas Buteler e a mulher Lia vivem em Lisboa há quatro anos Mário Lopes Pereira

Nos primeiros dias de Julho do ano passado, milhares de pessoas em Lisboa saíram das suas casas para ir conhecer as dos outros. A quinta edição do Open House abriu as portas de vários espaços geralmente vedados ao público e os lisboetas corresponderam, em muitos casos aguardando sob um sol escaldante durante várias horas até que pudessem entrar. Um dos locais que recebeu visitantes foi uma garagem na encosta da Graça. Discretíssima por fora, despertou curiosidade pelo que foi feito lá dentro: um espaço frio e aparentemente inóspito tornou-se numa casa ampla, luminosa e acolhedora graças a um projecto arquitectónico do atelier Fala, com sede no Porto.

Uns meses depois, no fim de Fevereiro deste ano, Tomas Buteler estava a dormir nessa mesma casa quando foi brutalmente surpreendido. O muro situado nas traseiras do prédio colapsou, as terras começaram a descer a encosta e entraram-lhe violentamente pelas clarabóias da casa. “A cozinha do meu vizinho caiu-me em cima, literalmente. Tive de me livrar dos escombros para poder sair daqui. Esta sala ficou praticamente toda soterrada. A porta da rua saiu voando.”

A garagem que Tomas e a mulher, Lia, transformaram em casa fica na Rua Damasceno Monteiro, número 108. Foi um dos edifícios mais seriamente afectados pelo aluimento de terras e o colapso de um muro que aconteceu na madrugada de 27 de Fevereiro, que no total atingiu seis prédios de habitação. Todos os moradores dos números 106 e 108 abandonaram as suas casas e estiveram seis meses alojados noutro local a expensas da Câmara Municipal de Lisboa, que chamou a si a responsabilidade de reerguer o muro destruído e as casas afectadas.

No fim de Agosto, a autarquia devolveu as chaves a Tomas. Ele já sabia que a casa não ia ficar exactamente como era antes, mas ainda assim sentiu-se incrédulo. As quatro clarabóias que garantiam luz natural desapareceram, a cozinha não foi reconstruída. À sua frente tinha, de novo, um espaço com paredes brancas e chão cinzento, nada mais. Uma garagem, não uma casa.

"Um espaço singelo"

Tomas Buteler é argentino e vive em Portugal com Lia Tumkus, brasileira, desde meados de 2013. “A ideia nem sequer era ficar em Lisboa por muito tempo”, explica Tomas no meio do sítio a que durante um ano chamou casa. No início de 2015 o casal decidiu estabelecer-se definitivamente por cá e, em Julho, comprou este espaço, onde em tempos funcionara uma tipografia. “Este era o meu primeiro imóvel e eu queria fazer uma coisa com alguma graça.” Contratou por isso os arquitectos do atelier Fala, eles desenharam-lhe “um espaço singelo”.

As quatro clarabóias já existiam desde a construção do prédio, nos anos 50, as duas casas de banho também já tinham sido construídas. Deu-se um tratamento especial ao chão, acrescentou-se uma cozinha, puseram-se umas cortinas a separar áreas privadas de áreas comuns, decorou-se o espaço com móveis especificamente escolhidos para o local.

O casal mudou-se para ali em Fevereiro de 2016, pouco tempo depois abriu portas aos olhares curiosos do Open House. “Tinha montado isso pensando que era para sempre. Mas pronto, durou pouco”, comenta Tomas.

Logo a seguir ao aluimento de terras, a câmara tomou posse administrativa dos edifícios e do muro caído, que a autarquia diz pertencer a um condomínio privado que se situa mais acima na encosta, sobranceiro à Damasceno Monteiro. “De imediato tiveram início os trabalhos de estabilização urgente do muro. Com carácter de emergência avançaram as principais intervenções com vista à tentativa de reposição de condições mínimas de segurança da obra e dos edifícios subjacentes”, lê-se num relatório que o município entregou aos jornalistas a meio de Abril. Nessa altura, o muro estava já “em fase adiantada de reconstrução” e os dois prédios em pior estado iam brevemente ser intervencionados a fundo, segundo o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado.

Seguiu-se um tempo de expectativa. Os moradores e a câmara reuniam-se frequentemente no Mercado do Forno do Tijolo, mesmo ali em frente aos prédios. Tomas diz que, no fim de Maio ou no início de Junho, viram o projecto. “Foi nesse momento que tivemos algum contacto directo com o empreiteiro. Eles disseram que eu ia perder duas clarabóias. Eu perguntei três vezes para ver se tinha percebido bem. Tudo certo, a gente saiu satisfeita. Depois nunca mais tive contacto com o projecto até ao momento em que vim acompanhar uma peritagem da seguradora. Aí percebi que as quatro clarabóias não estavam cá.”

A autarquia explica, através de e-mail, que os trabalhos “tiveram como prioridade a reconstrução do muro, bem como a sua futura manutenção e monitorização.” E que, para garantir maior segurança, foi colocada na parte traseira de todos os edifícios “uma laje de reforço” que não existia até agora. “No que respeita ao número 108, conforme pareceres técnicos e de acordo com o projecto de execução aprovado, a laje onde se localizavam as clarabóias foi redimensionada, aumentando a sua resistência e segurança, não permitindo a permanência das mesmas”, esclarece a câmara.

“O que eu mais reclamo é o facto de ter perdido luz natural”, queixa-se Tomas Buteler, que não compreende ainda porque é que os vizinhos ficaram com quartos e cozinhas completamente renovados e a casa dele ficou sem cozinha e até com uma parede com o cimento à mostra. Ao PÚBLICO, a câmara não esclareceu esta e outras questões. “Em todo este processo, o município sempre teve uma postura de apoio e protecção dos moradores, de todos os prédios sem excepção, da salvaguarda da sua segurança e bem-estar”, disse a autarquia no referido e-mail.

 “Tirando o trauma de ter perdido absolutamente tudo o que tinha na vida, a maior dificuldade foi lidar com a câmara.” A frase de Tomas parece exagerada, mas ele assegura que várias vezes se dispôs a entregar à autarquia o projecto de obras, para que a casa voltasse a ser o que era. “A gente nunca teve resposta. Eles se recusaram a ouvir a gente e a envolver-nos no processo.”

"Apurar responsabilidades"

Mas o pior pode ainda estar para vir. A posse administrativa da câmara terminou no momento em que as chaves foram devolvidas e os moradores regressaram a casa. A autarquia não tenciona arcar com os custos da obra – que não especificou, apesar de ter sido questionada – e quer “apurar responsabilidades” para apresentar a factura a quem de direito. O muro que caiu, garantia o município no tal relatório divulgado em Abril, “não é propriedade municipal”, terá sido vendido ao condomínio Villa Graça, no topo da encosta, em 1996. Nesse mesmo documento apontava-se a acumulação de água da chuva e das regas como um dos potenciais motivos para o aluimento de terras.

Enquanto esse processo de “apurar responsabilidades” não estiver concluído – ou seja, enquanto não se esclarecer quem devia ter feito a devida manutenção do muro –, os moradores não conseguem activar os seguros relativos aos recheios. E teme-se, até, que os custos da reconstrução venham a recair sobre quem acordou sobressaltado com as terras a entrar pela janela.

No caso de Tomas, as perdas materiais rondam os 50 mil euros. Isto sem contar com as obras que ainda terá de fazer para que aquele sítio possa ser considerado uma casa. “Até Fevereiro, parecia que a nossa experiência em Portugal era um conto de fadas. Mas desde então tem sido um pesadelo.” 

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