Uma CETA no coração da democracia

Quando os políticos levam a sério o seu dever, até um parlamento regional consegue fazer mais para regular a globalização do que a nossa orgulhosamente negligente Assembleia da República.

Poderíamos julgar que, depois da “década (e meia) perdida” por que a economia portuguesa passou neste século, talvez a nossa elite política tivesse aprendido a lição de quem nem todas as aventuras são para entrar de olhos fechados. Mas não. Portugal discutiu os efeitos do alargamento do mercado único europeu aos países de leste… depois destes terem aderido à UE. Portugal discutiu os efeitos da entrada da China na Organização Mundial do Comércio… quando os produtos chineses já tinham canibalizado uma parte do nosso perfil de exportações para países como a França e a Alemanha. Portugal discutiu profundamente os efeitos do euro na sua economia (incluindo planos irrealizáveis para sair do euro “sem sair da UE”) depois, é claro, de termos decidido entrar no euro sob o sucinto argumento de que era preciso estar “na carruagem da frente da integração europeia”. Viemos a lamentar o impacto agregado destes três fatores na economia portuguesa apenas quando já era tarde.

Poderíamos também julgar que, depois da vaga populista do ano passado, os olhos e os espíritos estivessem bem abertos para as injustiças da globalização. Pois no ano passado não faltou quem, mesmo na opinião pública portuguesa, quisesse cavalgar a onda nacional-populista criticando, em particular e por vezes com bastante justiça, os perigos de acordos comerciais negociados à porta fechada, distantes das populações. Onde estão eles agora? Num momento em que há boas razões para lançar o alerta, estão calados.

Praticamente sem se dar por isso, a Assembleia da República vai votar hoje o maior acordo comercial negociado pela União Europeia nos últimos anos: trata-se do Acordo Comercial Global UE-Canadá (CETA, na sigla em inglês). O CETA demorou nove anos a negociar e cobre nos seus milhares de páginas todas as áreas relevantes do comércio internacional e dos investimentos (à exceção dos serviços). Do ambiente aos direitos laborais, da contratação pública à proteção ao consumidor, não há praticamente uma área deste acordo que não mereça uma leitura atenta pelas consequências que pode ter nos nossos empregos, salários e saúde. Particularmente preocupantes são as disposições para proteger os investimentos das multinacionais da “incerteza” que poderia representar a sua sujeição aos tribunais nacionais, europeus e canadianos. Como já vem sendo hábito, as multinacionais terão no CETA direito a um sistema arbitral à parte.

Em Portugal, o debate parlamentar sobre o CETA foi adiado e depois antecipado, e acabou a realizar-se em apenas uma sessão, na segunda passada. Após esta discussão sumária, é de prever que a aprovação do acordo seja igualmente desenvolta, com os votos do PS a serem suplementados por um PSD e um CDS agora esquecidos do seu papel de desmancha-geringonças, e do outro lado o BE e o PCP a apresentarem propostas de rejeição do CETA que sabem derrotadas à partida. Perante um dos acordos comerciais mais importantes dos últimos anos, estamos limitados à rotina.

Teria de ser assim? Não. Compare-se isto com o que se passou no ano passado no parlamento regional da Valónia, umas das regiões da Bélgica. Tal como descrevi então nestas páginas, o acordo com o Canadá foi profundamente discutido pelo parlamento da Valónia durante vários dias. O governo belga foi forçado a procurar garantias e proteções de aplicação junto das instituições europeias e do governo canadiano. E o estado belga acabou a apresentar um processo contra algumas das disposições do CETA no Tribunal de Justiça da UE.

A falta de comparência da elite política portuguesa ao debate sobre o CETA vem esclarecer-nos sobre a resposta a uma pergunta que tem andado por aí: qual é a melhor escala para fazer face a uma globalização desregulada? A escala nacional ou a europeia? A resposta é surpreendente: qualquer uma, desde que quem tem responsabilidades políticas não seja relapso no cumprimento delas. Quando os políticos levam a sério o seu dever, até um parlamento regional consegue fazer mais para regular a globalização do que a nossa orgulhosamente negligente Assembleia da República.

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