O acordo comercial Canadá-União Europeia e o fantasma da justiça privada

Nos diferendos com o Estado português não vai haver tribunais privados a decidir, nas costas do povo, litígios de milhões.

A justiça arbitral não tem tido vida fácil em Portugal. Muito por culpa dos árbitros, mas em especial por culpa do legislador (que o mesmo é dizer, da nossa elite política), a arbitragem tem sido encarada ora como a panaceia para as dificuldades crónicas da justiça estatal, ora como o diabo neoliberal que entrega à decisão dos “grandes advogados” as causas comerciais de maior valor. Obviamente, a arbitragem não é nada disso. É um instituto jurídico com milhares de anos e cuja importância tem crescido em todo o mundo desde a Revolução Francesa, muito em particular desde os finais da II Guerra Mundial. Na verdade, há conflitos, tanto comerciais como diplomáticos, que apenas podem ser dirimidos pela via arbitral. Nenhuma outra solução de caráter jurisdicional é praticável ou sequer legalmente possível.

A mais recente batalha dos militantes contra a chamada “desjudicialização” trava-se na discussão que está a ter lugar na Assembleia da República sobre a ratificação do CETA (sigla inglesa para Acordo Económico e Comercial Global), celebrado entre a União Europeia e o Canadá em outubro de 2016. O argumento dos que se opõem à ratificação centra-se na suposta exigência da via arbitral para dirimir os conflitos entre os investidores estrangeiros (invariavelmente descritos como “as grandes empresas multinacionais”) e os Estados que acolhem os investimentos. Ora isto é, simplesmente, falso. O CETA não contém qualquer referência a arbitragem, salvo para os diferendos entre o Canadá e a União Europeia. Em vez disso prevê a existência de um novo sistema de resolução de conflitos assente num tribunal de investimento permanente e institucionalizado. Este será composto por juízes designados pelos governos dos Estados contratantes e as suas audiências serão por regra abertas ao público. Prevê-se, aliás, que as respectivas sentenças possam ser objecto de recurso, tanto em matéria de facto como de direito.

Este novo sistema de resolução de conflitos sobre investimento resulta de um trabalho da Comissão Europeia que se iniciou em maio de 2015 com um documento conceptual que visava dar resposta às críticas — nem sempre injustas — que vinham sendo feitas à arbitragem de investimento desde há vários anos. Tais críticas intensificaram-se e ganharam um ímpeto imparável depois de um tribunal arbitral sedeado em Haia ter condenado a Federação Russa, em 2014, ao pagamento da exorbitante quantia de 52 mil milhões de dólares (um quarto das reservas do país em divisas) aos accionistas da Yukos, a empresa petrolífera russa que, por razões políticas, o governo de Vladimir Putin expropriou sem qualquer cerimónia. Há quem suspeite que desde então os bots e outros instrumentos de propaganda cibernética utilizados pelos russos fizeram nas redes sociais um trabalho sistemático de descredibilização da arbitragem. Trata-se obviamente de informação não confirmada. Mas o certo é que a propaganda contra a arbitragem de investimento resultou. Em novembro de 2016, a Comissão Europeia fez a proposta final de um sistema que iria substituir o antigo ISDS (sigla inglesa para Sistema de Resolução de Conflitos entre Estados e Investidores). Foi esse sistema que, já em Fevereiro de 2016, a Comissão inseriu no CETA, depois das objecções que o governo da região da Valónia suscitou relativamente à anterior redacção do tratado.

Ninguém sabe como o novo sistema irá funcionar na prática. O presidente Juncker, no seu recente discurso sobre o Estado da União, aludiu à necessidade de um tratado multilateral sobre a matéria. A Comissão, por seu turno, já formulou um pedido de mandato para negociar um acordo internacional visando a criação de um tribunal multilateral de investimento. É o ovo de Colombo! Retira-se este polémico tema dos tratados comerciais e — suspeitam alguns — entrega-se a batata quente à UNCITRAL, a Comissão das Nações Unidas para o Comércio Internacional que, aliás, tem uma história de mais de meio século no tratamento destas matérias. Quer as coisas se passem assim quer não, os detractores da arbitragem podem dormir descansados: nos diferendos entre os investidores canadianos e o Estado português não vai haver tribunais privados a decidir, nas costas do povo, litígios de milhões...

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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