Humilhados por Vigo ou a correcção “político-geográfica”

A reacção quase geral à pretensa gaffe de Juncker mostra que a costela provinciana do país e da sua capital está bem viva.

1. Há uma semana, o espaço público inflamou-se quase ao ponto do escândalo com uma pretensa gaffe de Jean-Claude Juncker sobre qual seria a cidade ou país mais ocidental da Europa. Políticos, comentadores, intelectuais de alta estirpe, a comunicação social em geral e as redes sociais em especial insurgiram-se contra uma passagem do discurso de Juncker sobre o “Estado da União” — passagem em que ele fala numa Europa que vai de Vigo a Varna, que vai da Espanha à Bulgária. A indignação começou com um tweet de Marisa Matias, em que se denunciava o esquecimento de Portugal, que logo se propagou a uma miríade de jornalistas e às redes sociais, perpassou por declarações de políticos e aterrou em textos de intelectuais normalmente desapaixonados.

Não há outra maneira de dizer isto, senão esta crua e bruta: aquela reacção releva do nosso costumeiro provincianismo, quiçá de um nacionalismo serôdio, e, em alguns casos, já de oportunismo ideológico ou até de uma inesperada ignorância. E prova, afinal, que a costela provinciana do país e da sua capital, que Eça tão bem retratou, está viva e bem viva. A dita reacção — sem qualquer adesão à realidade, já que não houve gaffe alguma — mostra, afinal, que subsiste o país complexado e atrofiado, pouco confiante em si, que se amofina ao que julga ser um remoque.

Há que dizê-lo, porque é de elementar justiça: o dito de Juncker não revela nenhuma ignorância, nenhuma sobranceria e nenhuma indiferença relativamente a Portugal. Já a pueril vaga de indignação patenteia o nosso arcaico provincianismo e, em certos casos, a esperteza saloia, que tantas vezes o acompanha, para “forjar” ou “forçar” argumentos. A polémica é tão ridícula que não devia merecer mais de duas linhas; mas como ninguém se rebelou contra o despautério que invadiu o espaço público, dar-me-ei ao luxo de desperdiçar as linhas que restam.

2. A respeito da Europa, são inúmeros os textos e discursos da mais variada índole que aludem a cidades ou a países para sinalizar a abrangência e a inclusão da diversidade europeia. Estas referências tanto se atêm a limites geográficos como a símbolos culturais, a cidades capitais como a monumentos representativos, a paisagens icónicas como a aldeias emblemáticas. Pode-se falar da Europa que vai de Helsínquia a Lisboa ou de Amesterdão a Nicósia. Como se pode falar da Europa que vai do Paternón a Westminster, do Coliseu à Pequena Sereia de Copenhaga ou de Florença a Upsala. Já todos os políticos europeus e, bem assim, académicos e artistas usaram todas as referências pensáveis nas suas intervenções públicas. Não passa pela cabeça de ninguém que, ao invocar uma destas imagens ou representações, o autor do texto ou do discurso tenha de se socorrer do fanatismo do politicamente correcto ou de um rigor científico inexpugnável.

Tudo o que vale por dizer que, mesmo que houvesse alguma incorrecção na menção de Juncker, ela não teria qualquer importância. Usou aquelas referências como poderia ter usado milhares de outras. Que se saiba, não houve um movimento semelhante no Chipre, que está, esse sim, no extremo oriental. Nem na Roménia, nem na Finlândia, nem ainda na Irlanda (ou até nos Açores). E não houve também uma brigada que pugnasse por uma menção aos extremos norte e sul, já que ele se ateve ao eixo leste-oeste.

3. Espanta, todavia e ainda assim, que tanto português — e tanto português com responsabilidades — se tenha melindrado com a escolha de Vigo. Não sei em que mundo vivem, nem que conhecimentos de geografia têm, mas a Galiza situa-se no extremo ocidental do território continental europeu. Vigo, a Corunha ou o Ferrol são tão limite ocidental da Europa como Valença, Viana, Porto, Aveiro, Figueira da Foz, Lisboa, Setúbal ou Sagres. A não ser que se espere de um discurso político global que meça as distâncias em metros e centímetros. Pode haver quem não goste, não saiba ou não queira saber, mas a Espanha, designadamente por causa da Galiza, é um país que se situa no extremo ocidental da União Europeia. A Europa vai mesmo da costa ocidental da Espanha (e de Portugal) até à costa oriental da Bulgária (ou da Roménia).

Alguém tem de lhes dizer com todas as letras: Juncker não errou, não cometeu nenhuma gaffe, nem incorreu em nenhum lapso; está simplesmente certo! Claro que haverá sempre um purista que virá com o Cabo da Roca, ao qual outro ainda mais purista oporá o ilhéu de Monchique (frente à ilha das Flores), para sobrevir um francês a atirar com a agora martirizada Guadalupe.

4. Há mesmo quem tenha lembrado que Lisboa está, ela sim, no limite ocidental. Mas teria algum sentido apresentar a parelha Lisboa-Varna? Não viriam logo estes indignados, com a sua correcção político-geográfica, dizer que se estava a equiparar uma capital a uma pequena e insignificante cidade e, pecado dos pecados, a atrelar Portugal à Bulgária? Talvez muitos dos incomodados, porque vivem em Lisboa, não conheçam Vigo e, por isso, estranhem o sublinhar da sua ocidentalidade e “atlanticidade”. Creio, de facto, que dificilmente um português que viva no Entre Douro e Minho se atrevesse a dizer que Vigo é uma cidade menos ocidental do que Viana ou o Porto.

Será que nenhum daqueles imaculados patriotas percebeu o alcance e o significado da escolha de duas cidades médias (para não dizer, pequenas), uma do ocidente e outra do leste, uma de um país grande, outra de um país médio, uma de um país próspero, outra de um país pobre? Será que ninguém percebeu o simbolismo desta escolha e acreditou mesmo no efeito literário de aliteração em “v” (que seria igualmente conseguida por Viana ou por Valença)?   

Repito: não houve lapso nem gaffe. E, por isso, dizer, como Rui Ramos ou Vítor Bento, que se tratou de um lapso — ainda por cima para fazer uma leitura política sobre uma menorização europeia ou até uma dispensabilidade de Portugal — é da ordem do absolutamente desconcertante.

SIM E NÃO

SIM. Subida do rating. Faz finalmente justiça aos enormes sacrifícios iniciados em 2010 e augura a entrada num novo ciclo. Assim as restantes agências sigam o exemplo da S&P.

NÃO. António Costa. Discordar de políticas do anterior Governo não implica ignorar e negar o mérito do seu enorme contributo para a subida do rating. O maniqueísmo era a marca do socratismo, não do PS.

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