Patuscos

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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A vida não está fácil, a não ser para os mais pintados, com a reserva de que quase nenhum destes é tão bom como o pintam...

Na verdade, ninguém me tinha prevenido da extrema volatilidade dos meus apoiantes, dos meus admiradores, se os há: num sopro, esquecem-me e trocam-me pelo cantor angolano ou brasileiro que vai alternando na sensação que fazem entre quem se apressa a pôr na beirinha do prato tudo o que não seja sensacional. Mais: invectivam-me, os ingratos, seja porque falo contra o Benfica, contrariando a jurisprudência e a ordem instalada nos órgãos de comunicação social (também conhecida por “ordem natural das coisas”), seja porque não abordo as questões da língua com o denodo que esperavam, porque não vario o guarda-roupa, porque não tenho um corte de cabelo à presidiário chique, porque torna, porque deixa... Não imaginam, meus amigos (sim, ainda os tenho, apesar de escrever estas crónicas), como é difícil agradar a gregos e a troianos quando não há gregos nem troianos a convidar-me para jantar nas suas casas, para eu poder descobrir que diabo comem e de que diabo falam.

Se nenhum homem é uma ilha, agrada-me a ideia de ser um arquipélago, com delegações em vários continentes. Mas a consolidação da capital dá-me água pela barba. Viver num castelo não é ter uma casa, é uma ocupação a tempo inteiro, a descobrir atalhos para não me deixar apanhar pelo Estado, que toma por galinha dos ovos de ouro o que é apenas o meu espaço vital. Se eu vacilar, afrouxar, tropeçar no caminho da procura ansiosa de fontes de financiamento que me permitam liquidar taxas, impostos e obras de manutenção, o Estado apanha-me a galinha pelo pescoço, dá-lhe um ou dois sopapos só para fazer alguma coisa que não dê muita despesa, esquece-se de que tem de passar a alimentar o que é seu e muito rapidamente torna-se dono de uma carcaça em decomposição que vende, mais à frente, ao desbarato, a um empreendedor que tiver o atrevimento de transformar em hotel o castelo entre cujas pedras nasci (e não são os empreendedores feitos de atrevimento “quase tudo, e cloreto de sódio”?).

Seriam incomensuráveis os prejuízos daí decorrentes. Desde logo sobre a minha carreira nascente de escritor. Que dignidade restaria a um autor de sucesso, que fulgor, que laivos de prosápia, se a sua vida fosse resumida assim na aba da sobrecapa da “História Universal das Sopas-Secas”, a publicar oportunamente: “O Marquês de Casal Mido nasceu no local actualmente correspondente ao quarto 201 do Hotel Bristol. Hoje em dia, mora no Porto, na companhia de sua mulher e filhas, genros, mordomo, governanta, cozinheira, criados de dentro e de fora, motorista, jardineiro e três cocker spaniels, dois setters-irlandeses e um são-bernardo, num estúdio com kitchenette por cima da Mercearia A Pérola de Ramalde”?

E, agora sob um ponto de vista mais social, conseguirá o cidadão médio do meu país velho de 900 anos sofrer com cara alegre a ignomínia de ver as casas de brilho colectivo passarem a ostentar provocativamente letreiros compatíveis com funções mercadejantes dos ramos hoteleiro, clínico, bancário, segurador, associativo-corporativo, informático, imobiliário ou caótico-turístico de massas pobres? Não lhe causa nem que seja uma intenção de um ensaio de brotoeja?... Quem não se sente não é filho de boa gente. E o que é de mais é moléstia. E a casamento e a baptizado não vás sem ser convidado. E festaria sem comedoria é como gaita que não assobia.

Mas já que me fugiu a pena para os empreendedores, vem a calhar avisar para a silabofagia que por aí anda, ou seja, a prática de, tal como na administração de dinheiros públicos, ficar com um pouco de algumas palavras que se utilizam no dia-a-dia. Dizem até que há pessoas que engordam por isso mesmo, apesar dos livros de dietas que explicam que as sílabas, ao contrário do bolo de chocolate com manteiga e da massa folhada, não contêm hidratos de carbono nem gorduras.

Seja como for, há vocábulos que estão a ser alvo de deglutição silábica por vorazes locutores. Em vez de “empreendedorismo”, palavra de difícil pronúncia (e de indigesta audição), pratica-se por aí o “empreendorismo”. Também a “destabilização” e o “destabilizar” pretendem passar por “desestabilização” e “desestabilizar”, respectivamente. O “restruturar”, por muito que insista, não pode substituir o “reestruturar”, nem o “detiorar” o “deteriorar”, nem o “tulfone” o “telefone”. E menos se entende que se diga “runião” por “reunião” ou “pograma” por “programa”.

Lembro-me de um tipógrafo me ter abordado para perguntar se estava certo dizer “quadricomia”. Respondi-lhe que estaria certo, sim, se e quando pretendesse anunciar a sua intenção de comer um quadril, mas, ainda assim, com dois problemas: o primeiro era o de ter digerido previamente o “l” final de “quadril”; o segundo, o de utilizar o pretérito imperfeito para substituir indevidamente o condicional. Mas como ele revelasse uma certa relutância em utilizar “quadrilcomeria”, persuadi-o a utilizar “quadricromia” para designar um trabalho de impressão a quatro cores. Não sem o prevenir de que tomasse o maior dos cuidados, se fosse ao Brasil, para não utilizar, em caso algum, numa reunião social, a palavra “ticomia” para dizer “tricromia”: é erro grosseiro com potencial para desencadear uma guerra. A de Tróia começou por algo menos evidente. Ainda hoje falamos nela, o que não deixa de espantar quem não sabia que alguma coisa tinha acontecido antes da Primeira Guerra Mundial.

Os tipógrafos são uns patuscos, toda a gente o sabe (e se acham fácil construir uma frase que não se desmanche quando bate em “quadricromia”, experimentem pronunciar “opróbrio” durante um jantar de esparguete com molho de tomate...). Mas os alfarrabistas e os bibliófilos não o são menos. Aliás, nestes casos os adjectivos são frequentemente outros, como vejo no título do livro que tenho ao meu lado, sobre a mesa de onde lhes escrevo, um imponente volume de 1995, com 638 páginas, capa cartonada e sobrecapa belamente decorada a ouro, com as efígies dos grandes escritores antigos: “A Gentle Madness”. O mesmo autor, Nicholas A. Basbanes, após outras obras, voltaria à ideia em 2000, publicando o mais conciso (250 páginas) mas não menos incisivo “Among the Gently Mad”. Para lhes aguçar o apetite (ou involuntariamente causar indigestão, conforme os casos), junto os pós-títulos das duas obras citadas, respectivamente, em tradução minha: “Bibliófilos, bibliómanos e a terna paixão por livros”; “Estratégias e perspectivas para o caçador de livros no século XXI”.

É uma pena que, entre tantos milhares de livros que agora se editam numa espécie de português, ainda não tenham sido publicados estes e outros livros em versões nossas. Por essas e por outras (traduções lamentáveis, revisões inexistentes ou por amadores que têm muito jeitinho para Português, preços) é que a parte de livros em inglês da minha biblioteca vai aumentando a olhos vistos.

Correio Premente

De Lucílio São Telmo, lugar de Moço Morto, freguesia de Gavião, concelho de Vila Nova de Famalicão: “É curioso que só se fale em Portugal de fogo-de-artifício por ocasião da passagem de ano ou por pequenos acidentes que, pela especificidade do negócio, causam muito barulho. Nada sobre uma indústria que dá muito brilho ao país por ajuste directo, ganhando consecutivamente concursos públicos de fornecimento de fogos para dias festivos por esse mundo fora. E não digo só nos países onde existem comunidades portuguesas. Ainda agora em Budapeste, só para dar um exemplo, por ocasião do tricentenário da invenção da bolacha-húngara, a nossa empresa fez um bonito diante da confeitaria do sr. György Mikes. Como nós dissemos na altura, foi magia para os magiares. Já agora aproveito para desmentir que tenhamos tido alguma coisa a ver, nem de perto, nem de longe, com um incêndio fugaz (que atribuímos a uma fuga de gás) que, por infelicidade da pirotecnia nacional, coincidiu no tempo e no espaço, mas sem nexo de causalidade. Apesar de o incêndio ter desviado um pouco a atenção do nosso espectáculo, porque as confeitarias também lidam com corantes que resultam muito bem na queima, não havia possibilidade de nos suplantar nas nossas receitas secretas onde entram os nitratos de estronciana secos, o clorato de potassa, as cinzas azuis inglesas, o antimónio cru e outros ingredientes que não posso revelar, tal como os pasteleiros não revelam a receita do creme do pastel de nata (que, por sinal, até arde bastante bem, em rutilâncias que me surpreenderam e aos meu sócios, por ocasião de um incêndio que misteriosamente eclodiu, numa confeitaria que estávamos a homenagear, no Crato).”

Caro leitor: eu já tinha tomado nota para tratar do assunto da pirotecnia, mas, por uma razão ou por outra, a minha atenção acaba por ser sempre desviada para um incêndio numa confeitaria próxima. Mas as cores são maravilhosas e justificariam a dedicação da totalidade de uma crónica. O meu coração divide-se entre pegar já nisso ou recordar o incêndio do dirigível “Hindenburg”, em Maio de 1937, que também foi misterioso. Só por curiosidade: a sua empresa já operava nessa altura?

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