António Guterres e a reforma das Nações Unidas

A pretensa reforma de Guterres talvez traga uns tantos empregos e uma mais ampla burocracia. E nada mais.

Na semana passada, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas (ONU), apresentou aos 193 membros uma proposta de reforma para tornar a organização mais eficaz. Já em Maio, num evento realizado em Londres pela organização, perante uma assembleia de cerca de 2000 personalidades, e depois em Julho, havia apresentado oito ideias orientadoras para essa reforma, aliás há muito reclamada, sobretudo no âmbito do Conselho de Segurança. Num desses discursos, Guterres recordou existir “uma grande desconfiança do público para com o sistema político e as organizações multilaterais como a ONU”.

Ao Conselho de Segurança, constituído por cinco membros permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e EUA) e dez membros eleitos pela Assembleia Geral, compete a manutenção da paz e da segurança internacionais, podendo fazer recomendações aos Estados-membros ou dar ordens obrigatórias. A ele pertence também determinar quando existe ameaça à paz, violação da paz ou acto de agressão, podendo empreender, por meios militares, acções para manter a paz.

Confrontando as normas internacionais com a realidade, facilmente se chega à conclusão no sentido de que os órgãos da ONU têm sido manifestamente incapazes de solucionar os vários conflitos armados a que a comunidade internacional está a assistir, sobretudo no Médio Oriente (como, por ex., o conflito israelo-palestiniano, o Iraque, Afeganistão e Síria).

Essa incapacidade deriva do facto de existir o direito de veto atribuído a cada um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Com efeito, cada um dos seus membros pode utilizar o veto para impedir que sejam adoptadas medidas coercivas contra um Estado, incluindo ele próprio. A Rússia, a China e os EUA têm recorrido sistematicamente ao veto, com base em razões puramente políticas e sempre que pretendem “abafar” um debate ou fazer prevalecer os seus pontos de vista. Deste modo, o Conselho de Segurança tem-se visto, assim, impossibilitado, na maior parte dos casos, de desempenhar as suas responsabilidades que a Carta lhe atribui na manutenção da paz.

O direito de veto é uma afronta a todos os outros países membros e é, sobretudo, o preço a pagar pelas Nações Unidas pela criação de um órgão com capacidade para decidir e actuar corporativamente, preço esse que, aliás, já se revelou demasiado elevado. A experiência negativa do direito de veto levou as Nações Unidas a criar um mecanismo que minorasse o veto. E assim, na altura da guerra das Coreias, em 1950-1953, aprovaram a “Resolução de União para a Paz”, estabelecendo que, no caso de o Conselho de Segurança ser incapaz de desempenhar a sua responsabilidade primordial na manutenção da paz e segurança internacionais, devido ao veto, a questão pode ser transferida para a agenda da Assembleia Geral, que poderá fazer “recomendações” (e não dar ordens) aos Estados-membros para pôr termo à violação da paz, ameaça ou agressão. Mais do que uma pequena conquista, esta atitude revela o desejo dos países membros se libertarem do peso e da injustiça que representa o veto.

Mas, no balanço destes 70 anos de existência, nem tudo foi mau ou indiferente, porquanto a ONU conseguiu o apaziguamento de alguns conflitos e a resolução de outros e pôde lançar-se, com relativo êxito, em várias operações de manutenção da paz. E quando se tornou claro que o problema dos refugiados da II Guerra Mundial afinal não era temporário, a Assembleia Geral criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), cujo trabalho foi manifestamente positivo com António Guterres na sua direcção.

Porém, no que respeita às muitas guerras ocorridas após 1945, a sua acção tem sido manifestamente ineficaz, em virtude da política dos blocos dirigidos pelas maiores potências mundiais, sem cujo acordo, como vimos, o Conselho de Segurança não pode decidir. Para melhor cumprimento da sua missão, o Conselho de Segurança precisa de um mandato mais alargado, o que poderá implicar uma ampla reestruturação, com entrada de novos países como membros permanentes (por ex., Alemanha, Japão, Índia e o Brasil).

O fim do veto e a implantação da democracia no Conselho de Segurança, por forma a que os votos do membros permanentes sejam iguais aos membros não permanentes, seria uma grande prenda que o secretário-geral da organização, António Guterres, poderia oferecer à comunidade internacional. Recorde-se que aquando da sua candidatura para secretário-geral, num dos debates, defendeu que “nenhuma reforma das Nações Unidas estará completa sem uma reforma do Conselho de Segurança”. Infelizmente, António Guterres, na sua alegada reforma, não toca em nenhuma destas questões, pelo que a ONU continuará a ser um organismo manifestamente ineficaz para resolver os grandes problemas que afligem a humanidade. A sua pretensa reforma talvez traga uns tantos empregos e uma mais ampla burocracia. E nada mais. 

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