Suu Kyi diz não temer escrutínio, mas Rakhine continua longe dos olhares internacionais

Líder birmanesa promete investigar denúncias, mas insiste que "não há provas sólidas" de que tenham sido cometidas atrocidades.

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A líder birmanesa afirmou que apesar das denúncias "mais de 50% das aldeias muçulmanas estão intactas",A líder birmanesa afirmou que apesar das denúncias "mais de 50% das aldeias muçulmanas estão intactas" HEIN HTET/EPA,HEIN HTET/EPA
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Apoiantes de Suu Kyi reuniram-se nas ruas de Rangum para a ouvir LYNN BO BO/EPA

Aung San Suu Kyi quebrou por fim o silêncio. Num discurso transmitido pela televisão birmanesa, a Nobel da Paz garantiu que o Governo, de que é agora a líder de facto, “não teme o escrutínio internacional” e quer apurar quem são os responsáveis pela violência que empurrou mais de 400 mil muçulmanos rohingya para o vizinho Bangladesh. Mas escusou-se a criticar as operações militares no estado de Rakhine, que as Nações Unidas dizem ser o “exemplo perfeito de limpeza étnica” e mantém os investigadores internacionais afastados da região.

O discurso – o primeiro desde o início da actual vaga de violência e já depois de Suu Kyi ter decidido não ir à reunião anual da Assembleia Geral – acontece numa altura em que já fugiram para o vizinho Bangladesh mais de 400 mil rohingya, de um total de 1,1 milhões que viviam em Rakhine.

As organizações de defesa dos direitos humanos, impedidas tal como as Nações Unidas de entrar na zona decorrem as operações, continuam a recolher testemunhos e imagens do ar que ilustram a dureza da contra-ofensiva do Exército ao ataque lançado a 25 de Agosto por rebeldes rohingya.

A Human Rights Watch (HRW) divulgou esta terça-feira uma análise a imagens de satélite, captadas antes e depois do início do actual surto, nas quais contabiliza mais de 200 aldeias total ou parcialmente queimadas. A Amnistia Internacional analisou também imagens de satélite da aldeia de Tula Toli onde, segundo vários refugiados, os militares entraram a 30 de Agosto, matando dezenas de pessoas e incendiando as casas enquanto os habitantes se punham em fuga. A única parte da localidade que não ardeu é aquela onde, segundo as testemunhas, viviam famílias budistas.

“Estamos conscientes de que a atenção do mundo está focada no estado de Rakhine. Como membro responsável da comunidade de nações, a Birmânia não teme o escrutínio internacional”, disse Suu Kyi, num discurso em inglês, transmitido pela televisão, e para o qual foram convidados diplomatas e responsáveis de agências humanitárias.

“Também nós estamos preocupados. Queremos descobrir quais são os problemas reais. Tem havido acusações e contra-acusações. Queremos ouvir todos e garantir que as acusações se baseiam em provas sólidas antes de agir”, acrescentou, sem se distanciar da narrativa do Exército, que mesmo após a transição para a democracia, em 2015, continua a deter a maior fatia do poder na Birmânia.

"A situação está prestes a explodir"

Os militares asseguram que se têm a limitado a combater contra o Exército de Salvação de Arracão (ARSA), grupo que se estreou em acções armadas em Outubro e que diz querer defender os rohingya da ameaça de aniquilação. E acusam os “terroristas” de atacarem por igual militares e civis – mais de 30 mil budistas e hindus foram resgatados pelo Exército das suas aldeias em Rakhine.

A líder birmanesa sublinhou que o seu governo está há pouco tempo no poder e tem tentado promover a harmonia entre muçulmanos e budistas, chegando ao ponto de garantir que “todas as pessoas no estado de Rakhine têm acesso à educação e à saúde sem discriminação” – uma afirmação que todos os relatórios internacionais e organizações no terreno desmentem, lembrando que aos rohingya não é sequer reconhecido o direito à nacionalidade, o que os remete ao estatuto de apátridas. “Aqui ninguém confia no outro. A situação está prestes a explodir. Basta uma única faísca”, garantiu à Reuters Tin Maung Swe, representante do Governo em Rakhine.

Numa intervenção que tinha de ser comedida para a audiência externa – onde grupos de monges budistas ultranacionalistas ganham força – e capaz de responder ao coro de críticas internacionais, Suu Kyi optou por ficar mais próxima dos primeiros.

Não usou em nenhum momento o termo rohingya, num país onde aquela minoria é considerada população imigrante oriunda da Índia e Bangladesh. Disse estar “preocupada com o número de muçulmanos que fugiram para o Bangladesh” e prometeu investigar as razões do êxodo, assegurando também que a Birmânia aceitará o regresso dos refugiados após um processo de “verificação”. Mas sublinhou que “mais de 50% das aldeias estão intactas” e lamentou que ninguém fale da população que optou por permanecer na região. Garantiu ainda que desde 5 de Setembro que “não há confrontos armados ou operações de limpeza”.

“Se isso é verdade, quem é que andou a incendiar as aldeias que vimos arder nas últimas duas semanas?”, questionou Phil Robertson, director adjunto da HRW, enquanto James Gomez, director da AI para o Sudeste Asiático, afirmou que o discurso da líder birmanesa mostra que “o seu governo continua a enterrar a cabeça na areia para os horrores em curso em Rakhine”. Se Suu Kyi não tem medo do escrutínio internacional “deve permitir que os investigadores das Nações Unidas entrem no país, incluindo naquele estado”, acrescentou.

Aplausos e preocupação

Já depois deste discurso, o chefe da missão que está a investigar a violência no país pediu ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU mais seis meses para apurar as denúncias de perseguição, assassínios em massa, tortura e violação. Marzuki Darusman explicou que os peritos da missão continuam a não ter autorização para entrar na Birmânia, centrando as suas investigações nos relatos de quem foge da violência. No entanto, o embaixador do país na ONU deu poucas esperanças de que a situação vá mudar, ao afirmar que a investigação “não é um rumo de acção que possa ajudar” à resolução do conflito.

As palavras de Suu Kyi foram mais bem recebidas pela China, que tem nos EUA o seu principal rival na influência junto do Governo birmanês e na Índia o seu principal competidor económico no país. “A posição da China é muito clara. Apoiamos os esforços do governo da Birmânia para restaurar a paz e a estabilidade em Rakhine”, afirmou o embaixador Hing Liang, citado pela Reuters. Também o seu congénere russo, Nikolai Listopadov, sublinhou que apesar das suspeitas da ONU “não há provas fiáveis para fazer acusações de genocídio e limpeza étnica”. 

Em Rangum, onde muitos apoiantes se reuniram nas ruas para ouvir a dirigente que veneram há décadas, as suas palavras foram também aplaudidas. "A mãe Suu fez este discurso para que todo o mundo saiba o que realmente está a acontecer no nosso país. Estamos aqui para lhe mostrarmos o nosso apoio, quer compreendamos ou não o seu discurso", disse Ni Lar Thein, residente em Rangum.

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