Sobre a noite passada: em Twin Peaks nada acaba realmente

The Return chegou ao fim após 18 horas tanto difíceis quanto “um dos grandes feitos cinemáticos recentes”. Quatro perguntas e as respostas possíveis, de Dale a Dougie.

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Com David Lynch, e sobretudo em Twin Peaks, nada acaba realmente, porque tudo é dúplice. Há duplos por todo o lado, sonhos e portais, e quase houve dois finais para Twin Peaks: The Return. Uma série esplendorosamente perturbadora que não podia ser uma Straight Story, tinha de ser uma Estrada Perdida. No fim do caminho, está (ainda) Laura Palmer. É o último grito.

Por esta altura, 18 horas passadas e muita discussão travada (a série terminou há duas semanas nos EUA), já não é novidade que Twin Peaks é um dos fenómenos do ano. Twin Peaks: The Return é uma experiência, não é (só) uma história.

“Porque é tudo tão singular, tão deliberadamente construído para provocar respostas pessoais e subjectivas”, como analisou Matt Zoller Seitz no Vulture, o final desta viagem que nos interceptou 25 anos mais tarde parece então dividido em dois. Parte 17 e parte 18, a miragem de um final feliz (tão convencional quanto pode ser uma cena em que seres de outro plano extraem de um corpo um globo com uma força maligna dentro), primeiro, e depois uma tentativa de evitar o crime original que parece recomeçar tudo. “Vivemos dentro de um sonho”, avisou o duplo de Dale Cooper, o vilanesco Mr. C. “É futuro ou passado?”, pergunta-se nesse espaço onírico conhecido como a Black Lodge.

Twin Peaks: The Return é, simplificando ao máximo, a história do que aconteceu a Dale Cooper (Kyle MacLachlan) desde o final da segunda temporada da série televisiva de Lynch e Mark Frost que marcou os anos 1990. Dale Cooper, por um lado, aprisionado numa dimensão e numa mitologia que torna Twin Peaks uma caixinha de símbolos, numerologia, runas, electricidade, sons e riscas pretas e brancas sob cortinas de vermelho aveludado; e, por outro, do que aconteceu a todos os que, em Fevereiro de 1989, foram afectados pelo desaparecimento e morte de Laura Palmer. Pelo meio misturam-se doppelgängers e o que parecem ser histórias paralelas. Regressa-se às duas temporadas originais e ao filme Fire Walk With Me. No final, muito fica em suspenso.

Desaparecido o tom mais convencional de crime e novela da série original, ainda tem o camp (vide Michael Cera como protótipo de Marlon Brando) e a força da música, som no máximo, agora em cada fim de episódio na Roadhouse. Mas este Twin Peaks continua a ser assombrado por uma dança com Audrey Horne, pelo som das árvores ao vento — “Adoro electricidade. Adoro o vento”, disse Lynch ao New York Times. E por imagens e cenas “que existem apenas para símbolo, declaração, informação, efeito”, como resume o crítico de cinema Richard Brody na New Yorker.

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Antes da estreia, questionava-se se Twin Peaks seria tão disruptiva no seu Return quanto foi em 1990. Agora, há críticos a considerá-la a melhor coisa do ano, mesmo com os seus altos e baixos. Hora dos adjectivos: audaz, comovente, difícil, maluca, lenta, brilhante. “A série é um dos grandes feitos cinemáticos recentes; as suas ideias são profundas; o seu efeito duradouro”, decide Brody, apesar de considerar que Twin Peaks: The Return, de um Lynch de 71 anos, fica a perder em relação aos filmes que a inspiram.

“Isto é estranho”, diz Dougie Jones algures a meio da temporada. “Que merda é que acabou de acontecer?”, cospe um cowboy de Odessa no último episódio, como se fosse um avatar de milhões de espectadores em suas casas. Ficam algumas perguntas e algumas respostas possíveis.

O que é que se procurava? A bolha da “experiência pura Twin Peaks”, como dizia Damon Lindelof num podcast da Entertainment Weekly (EW)? Twin Peaks: The Return trouxe consigo velhos cenários e personagens, mas logo nos primeiros minutos levantou voo sobre Nova Iorque e lançou-se numa topografia diferente. Twin Peaks regressada é outro território. Construído sobre a memória da cidade, das montanhas e da floresta e seus habitantes, mas também sobre a falha tectónica que acede a outras dimensões — “planos” como lhes chama Lynch, e que nos confundem entre a semiótica da ficção científica, o ambiente do cinema do expressionismo alemão e a mais pura Americana de parques de roulottes, tartes de cereja, McCasas e McFamílias de subúrbio, casinos e motéis.

Ainda assim, na primeira parte do fim tudo voltou à cidade, à esquadra do xerife Truman, aos rostos dos afectos televisivos, ao destino de Laura, James, Bobby, Andy, Lucy, Norma, Ed, Nadine ou Sarah Palmer. Ao longo da temporada, também se lembrou os que foram desaparecendo (os actores Harry Dean Stanton, Miguel Ferrer morreram nos últimos dias ou meses, Catherine E. Coulson, David Bowie, Frank Silva ou Jack Nance há mais tempo) do seu universo. Mas neste novo terreno há Naomi Watts, uma nova personagem para recordar, e teremos sempre Dougie, Dougie Jones, o duplo mais enternecedor de Cooper, o transe ambulante. “Queremos ter um Dougie em casa, para tratar dele e com quem nos sentarmos e comer bolo e cenas”, disse Lynch à EW.

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Se se procurava mais mitologia, jackpot. Além dos símbolos de Twin Peaks que acordaram Cooper (o café, a tarte de cereja, o seu chefe Gordon Cole), quase recompensas para a nostalgia, avançou-se nos “porquês” da série. Entre muitas outras coisas que a Internet esmiuça com mestria, define-se a ”força negativa extrema” (Jowday/Judy), combatida pela brigada Blue Rose; Diane sai do gravador de Dale Cooper para ser Laura Dern; e associa-se a emergência do “mal” deste universo, de forma absolutamente política, à explosão da bomba atómica.

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Num dos mais distintivos episódios dos últimos anos, Part 8, o chiar da Threnody for the victims of Hiroshima for 52 string instruments, interpretada pela National Philarmonic Orchestra, é profundo desconforto e angústia no pequeno ecrã. A imagem é também um rasto de Eraserhead, obra seminal de Lynch, e da sua personagem Henry. “Uma coisa ou outra pode abrir portais”, disse Lynch à EW.

O que disse David Lynch sobre a temporada e o final? “O que importa é o que vocês acreditam que aconteceu. Muitas coisas na vida simplesmente acontecem e temos de tirar as nossas próprias conclusões”, disse em Belgrado, na Sérvia, há poucos dias. “Algumas coisas chegaram a uma conclusão. E algumas coisas pairaram. E é mais ou menos assim que é na vida”, dissera dias antes à EW.

David Lynch é sempre assim, um cineasta que quer que a obra fale por si e cuja obra, tal como o seu autor, muitas vezes fala por enigmas. A coisa pega-se. “Lynch realizou a sua visão” neste regresso ao mundo que criou há mais de 25 anos, explica Kyle MacLachlan à EW, mas o actor que foi o tisnado Mr. C, o atordoado Dougie Jones, o acelerado Dale Cooper e o esvaziado Richard também só sabe que nada sabe. No 18.º episódio, (uma versão de?) Dale Cooper encontra mais uma dupla (?) de Laura Palmer e tenta devolvê-la à sua casa e à sua mãe. Ouve-se novamente o grito primordial de Laura Palmer, interpretada por Sheryl Lee. De volta a outro cenário bem conhecido, a Black Lodge, ela sussurra-lhe ao ouvido. Fim. O final, e a série, “está aberto a diferentes interpretações”, diz o actor sem arriscar.

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Twin Peaks foi um bom negócio? O canal que recebeu a série de Lynch e Frost teve em média 300 mil espectadores a ver cada novo episódio em directo na TV americana, mas quando somados os vários tipos de visionamento a Showtime, um canal pago, contabiliza uma média de 2 milhões de espectadores por semana. A estreia, um episódio duplo, foi vista por quatro milhões. São bons números, como confirma a Hollywood Reporter, mas uma sombra de outros êxitos do canal.

O que é que ele ganhou com isso? Novos subscritores, que era o que o CEO do canal, David Nevins, diz que queria, e mais atenção para a Showtime, associada que fica a um dos grandes títulos do ano e ao prestígio da marca Lynch. O canal português que exibiu Twin Peaks, o premium TVSéries, não detalha mais do que isto sobre a adesão dos espectadores: “Em termos de audiência”, disse Ana Caldeira, da comunicação da Nos (detentora do canal), Twin Peaks “situa-se na média das séries comparáveis do canal”, com domingo, o dia de exibição da série, a ser “claramente o dia preferido dos subscritores”.

Twin Peaks pode regressar? Outra vez? Lynch disse que não falou mais com a Showtime sobre o assunto, e na mesma EW, lembrou “a coisa acabou agora mesmo”. Os seus actores, em particular MacLachlan e Dern, “seus” desde Veludo Azul e ainda mais com Cooper e Diane, estão sempre prontos para voltar, como garantiram nas últimas duas semanas. O presidente da Showtime disse que não está a contar com uma nova temporada, mas que tal “não é impossível”.

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