E tu, já foste praxado?

Cuspirem-me na cara é crime, darem-me uma chapada, duas chapadas, um soco no estômago, um empurrão, a cabeça contra a parede, um pontapé, dois, três, perdi a consciência

Foto
Diogo Baptista/Arquivo Público

Parece que ainda o vejo, não, minto, vejo-o mesmo, diante de mim, a olhar para mim, através de mim, os olhos fixos de pasmo, vergonha, nem por isso dor, que o iogurte não dói, ou talvez fossem as cordas, e quanto à posição, meus amigos... Porque, se não fossem as cordas, então por certo a cabeça de encontro ao chão, a beijar o chão, as mãos amarradas atrás das costas e um veterano de pé com os dois pés em cima da cabeça do caloiro do curso de Física, o mesmo caloiro a quem agora lhe espetam o cu no ar e as calças para baixo, mas nem por isso as cuecas, para divertimento geral dos veteranos, entretidos que estão a fazer pontaria ao rabo do caloiro com a ajuda de colheres e o já referido iogurte. Muito iogurte: bem-vindos às praxes da Faculdade de Ciências.

A mesma Faculdade de Ciências para onde tanto quis entrar à procura de ser o próximo Jacques Costeau ou David Attenborough e salvar o mundo e os ursos polares de uma assentada só, a mesma Faculdade de Ciências onde a brutalidade, a humilhação e a violação da minha dignidade se desenrola como um gigantesco rolo de papel higiénico usado, aqui e agora, naquele que era suposto ser o segundo dia mais feliz da minha vida (o primeiro foi ontem, quando vi as médias de entrada na parede da escola).

Não há problema, caloiro, diz-me um veterano de Biologia (o meu curso), a ti ninguém te faz mal, os de Física são todos malucos! Pois não, não há problema, diz-me ele, e se não há problema por que carga de água estou eu no meio do Campo Grande enquanto, um a um, 150 caloiros dizem qual o seu animal favorito? Urso polar, pois claro, respondo, então se és um urso polar, caloiro, vais já ali acasalar com a baleia! VAI, CALOIRO!

E o caloiro foi. Ou, melhor, os caloiros foram, um a fazer de conta que era um urso (e, se calhar, é) e a outra, a Cátia (nome fictício, mas podia ser a Cátia), a fazer as vezes da Moby Dick, toda vermelha diante das objectivas dos veteranos e veteranas, e eu a afogar-me e a Cátia a mergulhar, a nadar, a fugir entre as ondas e as rochas do Campo Grande, entre os peixes, os patos e o pão do Campo Grande, enquanto um grande urso polar morre de estupidez e cansaço nas profundezas dos oceanos.

TU, ORNITORRINCO, VAI ALI COM A COBRA! CO-LO-NOS-CO-PIA, ORGASMO, ORGIA, SÓ EM BIOLOGIA! CANTEM, CALOIROS!

E os caloiros cantam, e a festa continua, mas não para nós. Estávamos em 1996 e a nossa sorte era não haver Facebook, caso contrário, estou convencido, não teríamos hoje emprego ou a coragem de mostrar a cara fora de casa. As fotografias, a existirem, hão-de estar bem enterradas nas memórias bolorentas da gaveta de um veterano desempregado cujos 40 anos, espero, lhe tragam agora todas as hipertensões e colesterolemias do mundo. Rest in peace, a minha compaixão não terás. 

E a Cátia? O que dirá a Cátia? A Cátia nunca mais ninguém a viu, anulou a matrícula e desistiu do curso, para nunca mais. E ainda dizem eles que as praxes são inofensivas. Por isso, esta corda (outra, muito gostam eles das cordas) e os 150 caloiros amarrados uns aos outros pela presilha das calças em fila indiana, uma grande lagarta trôpega onde as pernas não podem fugir dos perfumes de ovos podres e vernizes estragados despejados sem dó nem piedade por cima da roupa e dos cabelos de quem, só por acaso, já vinha vestido à trolha, não fosse o Diabo... Durante uma hora andámos às voltas pela Faculdade de Ciências, escada acima, escada abaixo, os veteranos com canas e paus, os caloiros com medo e todos aos berros.

Este dia não tem fim. Entretanto, passar-se-á uma semana e um sem fim de tropelias, sem esquecer a aula fantasma, o tribunal de praxe, o baptismo e o famoso rali tascas, entre tantas outras provações. Os professores, apesar das salas de aula vazias, já têm o ordenado no bolso, por isso, nem vê-los. O reitor? Idem. E se a polícia nada fez no Campo Grande, pouca ou nenhuma esperança haverá na ajuda da mão alheia de quem por nós passa nos corredores da faculdade, quando muito risos, ou não estivessem 150 caloiros a tentar (a tentar) fazer o pino.

A praxe é crime. A ofensa à integridade física e emocional é crime e, no entanto, é socialmente aceite. Ao veterano concedem-se os direitos de um Deus impune, um cilindro compressor sem réstia de misericórdia apenas e somente por ser um ano mais velho.

Mas cuspirem-me na cara é crime, darem-me uma chapada, duas chapadas, um soco no estômago, um empurrão, a cabeça contra a parede, um pontapé, dois, três, perdi a consciência, dois veteranos fugiram, houve uma colega que chamou uma ambulância, já não acordei no hospital, é crime. Disseram que o veterano tinha bebido uns copos a mais. E a minha mãe a uivar as entranhas de fora.

Estou de volta a casa, mas ninguém me vê. Desço as escadas para o rés-do-chão e abro a porta como sempre abri a porta, percorro o corredor e abro a porta como sempre abri a porta do quarto dos meus avós. Estão lá os dois, outra vez, o meu avô que já dorme na cama ao lado e a minha avó ainda acordada como sempre esteve acordada. Pergunta-me se está tudo bem, mas eu só a consigo abraçar e chorar a bom chorar.

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