Attraversiamo?

A verdade é que não é fácil sair da zona de conforto. Sentimo-nos aconchegados pelas rotinas. Elas oferecem-nos uma certa sensação de segurança que é reconfortante

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Cameron Offer/Unsplash

Aqui há dias estive a rever, pela enésima vez, o filme Comer, orar, amar. É um filmezinho ligeiro, simpático. Assumo que me agrada a coragem da personagem principal de lançar toda uma vida ao ar: um casamento, uma profissão, uma estabilidade e ir correr mundo. A escritora e jornalista decide largar o sonho-americano que ela vivia (o casamento, a casa, o carro… apenas faltavam os filhos) e ir em busca de si própria e de uma felicidade que ela sentia não estar ao seu alcance naquele tipo de vida que ela levava. E, claro, agrada-me que essa “loucura” lhe tenha trazido frutos tão agradáveis: um novo amor, que pelos vistos se mantém até aos dias de hoje, e uma nova forma de apreciar a vida baseada no seu autoconhecimento. Por isso, sempre que o filme passa por um desses canais que são pagos e que nos apresentam, constantemente, a mesma programação, não perco oportunidade de o rever.

É nesse filme, aquando da visita a Itália da personagem principal, que surge a palavra “attraversiamo”. Desde a primeira visualização do filme que passou a ser uma das minhas expressões favoritas. Primeiro, porque gosto muito de italiano (acho que tudo soa mais bonito, interessante e romântico nessa língua). Segundo, porque gosto imenso do seu significado. Attraversiamo significa, literalmente, “vamos atravessar”. O que a expressão pretende traduzir é que temos que arriscar, sem medos, permitindo que o mundo seja, para nós, uma eterna novidade. No fundo, este attraversiamo procura inspirar-nos para sair da nossa zona de conforto, sem receios, porque é fora dessa zona de conforto que a vida acontece.

Quando falo em zona de conforto falo naquelas vidas seguras, aconchegantes, vidas compostas, principalmente, por rotinas. Rotinas instaladas nas nossas vidas que fazem com que os dias tenham sempre a mesma cadência, sem surpresas (boas ou más), sem situações inesperadas que nos obriguem a pensar ou a questionar a razão de ser e estar. São vidas que são vividas numa espécie de bolha, protegidas de tudo. E, até determinado momento, essas vidas rotineiras podem ser sentidas quase como prazerosas. Tudo está no lugar certo, aos dias sucedem-se as noites, as estações seguem o seu ritmo normal, não existem momentos que causem ansiedade ou medo. A pessoa vive no seu “casulinho” bem aconchegada sem necessidade de pensar ou de tomar decisões.

Contudo, e na minha forma de ver as coisas, viver assim mais não é do que viver de uma forma vegetativa. Viver numa zona de conforto sem tentar sair dela é como tentar viver assistindo, impávido e sereno, à passagem dos dias, sem nada que faça bater mais forte o nosso coração. Sem ansiedades e medos, é verdade, mas num comodismo estéril que nada traz de novo à nossa vida. Usando uma imagem, seria como uma árvore que se nega a crescer. E a vida traduz-se em nascer, crescer e morrer. Se não crescermos, crescimento esse que surge da saída da nossa zona de conforto, apenas estaremos mortos em vida. Uma vida sem momentos que nos tirem o fôlego, sem sensações provenientes de ter cumprido uma tarefa que nos desafiava, sem sentir que atingimos a plenitude. Não seremos mais do que vegetais. Uma vida sem altos e baixos, apenas uma longa linha contínua.

A verdade é que não é fácil sair da zona de conforto. Sentimo-nos aconchegados pelas rotinas. Elas oferecem-nos uma certa sensação de segurança que é reconfortante. Contudo, chega o momento em que percebemos que elas nos fazem sentir parados no tempo e vazios. Sentimos que precisamos de momentos estimulantes, momentos que nos façam sentir vivos e, sobretudo, momentos que façam sentir que estar vivo vale a pena.

A minha vida cedo me obrigou a sair do meu casulo quentinho (leia-se, casa e família). O primeiro grande embate foi a saída para Coimbra, para estudar. Aí senti que estava a saltar sem o apoio da rede lá em baixo. Assumo que tive momentos em que me senti perdida, pouco segura e com vontade de voltar à rotineira cidade-lar. Mas não voltei. E a experiência foi fantástica e não a trocaria por nada!

A minha vida profissional, essa, nunca deixou que a rotina se instalasse: fosse pelas muitas cidades onde trabalhei, fosse pelas várias funções que desempenhei: desde a professora de português, à professora que trabalhava com públicos especiais (cegos), à formadora dos mais variados temas e disciplinas, à que trabalhou com adultos, à formadora com públicos apelidados de problemáticos (grupos vários de etnia cigana), à professora de educação especial… A verdade é que até hoje a rotina nunca se instalou. E apenas posso dizer que esta constante saída da zona de conforto apenas me tornou mais rica. Tornei-me mais segura das minhas capacidades: os desafios não me assustam e, como tal, tornei-me mais confiante em mim mesma, no meu conhecimento e na capacidade de o transmitir. Os desafios são vistos de um modo positivo uma vez que me estimulam e motivam. Penso que adquiri um maior nível de tolerância e me tornei mais flexível. Ao sair da bolha de segurança percebi que existem muitas opiniões e que o meu ponto de vista não é o único possível (como tinha tendência a pensar quando mais nova), nem o único que transmite a verdade. Aprendi a aceitar a divergência de opiniões. E, acima de tudo, percebi que faço por viver a vida da melhor forma, tentando tirar o maior partido das situações. Vivo o aqui e o agora porque esse é que é importante. Para mim, o momento presente não é menor do que uma vida inteira e é nele que eu invisto, é nele que eu procuro ser feliz, é nele que eu me atrevo, pois é nesse atrevimento que surge a sensação de aventura e a sensação de estarmos num constante desafio à vida. E é isso que me faz sentir viva. Então… attraversiamo?

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