Lear, o rei que foi velho antes de sábio

A partir de Shakespeare, Bruno Bravo e os Primeiros Sintomas levam Lear ao Teatro Nacional D. Maria II, de 16 de Setembro a 15 de Outubro. Uma peça jogada no tabuleiro do poder, infiltrada pela demência, pelas traições filiais e por uma relação conflituosa com a verdade.

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É em Bento XVI que o encenador Bruno Bravo, da companhia Primeiros Sintomas, pensa inevitavelmente ao ver-se diante do Rei Lear que Shakespeare escreveu em 1606 filipe ferreira

A 11 de Fevereiro de 2013, numa reunião com dezenas de cardeais com vista à aprovação da canonização de três beatos – um dia corriqueiro no Vaticano –, Bento XVI apresentou de surpresa a sua renúncia ao pontificado. Antes de Bento XVI, é preciso recuar 598 anos para encontrar o Papa anterior (Gregório XII) a ter abdicado do lugar máximo da Igreja Católica. Joseph Ratzinger, fazendo uso do seu latim, confessou-se cansado e sem forças para prosseguir com aquela missão aos 85 anos. O fumo branco veio depois com Francisco.

É em Bento XVI que o encenador Bruno Bravo, da companhia Primeiros Sintomas, pensa inevitavelmente ao ver-se diante do Rei Lear que Shakespeare escreveu em 1606. Bastariam algumas das suas primeiras palavras – “(…) e é nosso firme intento sacudir / da nossa idade afazeres e cuidados / para outorgá-los a forças mais jovens / enquanto, aliviados, rastejamos / para a morte” – para fazer ressoar essa memória recente de um Papa que não esperou pela morte para parar. Alguém que abdica do trono e desce voluntariamente, escolhendo o seu sucessor, no caso de Lear. Para Bravo, “é uma coisa sem precedentes, muito moderna e muito bonita, de um rei que quer largar o reino, um rei que quer ser homem – porque um rei nunca é um homem”.

No processo de escolha do sucessor, que faz também pensar na preparação da passagem de testemunho dentro dos grandes grupos económicos ou em regimes autocráticos, Lear pede às suas três filhas uma declaração do seu amor por ele, prometendo compensar aquela que mais o amar. E é aí, logo nos primeiros minutos do clássico de Shakespeare, que o seu texto devastador sobre o poder começa a minar a natureza humana. O rei quer antes de mais provas de adulação e não de fieldade ou de verdadeiro amor. Na verdade, nem exige provas, mas apenas palavras que lhe inchem a vaidade. Diante de tal pedido, Goneril (a mais velha) jura amá-lo “não menos do que a vida, a graça, a honra e a beleza, e a saúde, tanto quanto um filho amou jamais ou pai sentiu”; Regan (a do meio) professa-se “hostil a qualquer gozo, outro” e diz encontrar “felicidade unicamente em amar [sua] Alteza”; Cordélia (a mais nova), pelo contrário, dinamita a sua resposta ao cingi-la a um “nada”, afirmando-se incapaz de “elevar o coração até à boca”.

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As duas primeiras serão compensadas por Lear com terras e bens, Cordélia será castigada por dizer a verdade, por acreditar que, ao contrário das suas irmãs casadas, antecipa um futuro em que dividirá o seu amor com quem vier a partilhar o seu leito, e não adoça as palavras, fingindo que não haverá outro homem digno do seu amor senão o pai. A honestidade vale-lhe ser deserdada e proscrita, algo que o encenador resume a uma ideia de que “a verdade, no sentido mais puro, mais inocente e mais razoável é uma zona que não tem lugar na sociedade e nas relações humanas”. Para Bruno Bravo, a empatia imediata gerada por Cordélia decorre, no entanto, de uma postura algo despropositada, vinda de alguém que “diz o que lhe vai na cabeça – e isso é algo que não se pode fazer”.

Há algo de profundamente insidioso nisto que Shakespeare, quatro séculos antes, nos propõe: se a empatia com Cordélia é inevitável e instantânea pela recusa em jogar o jogo da adulação e em ousar verbalizar a verdade, consciente ou inconsciente das consequências que daí advirão, esse acto será mais espelho do desejo de cada espectador gostar de se imaginar assim do que de o ser realmente. Afinal, quantos de nós não dirão as palavras que de nós se espera, contornando a verdade, se souberem que, no final, haverá uma compensação por essa habilidade?

Talvez a honestidade não seja também uma qualidade valorizada por Lear para um ocupante do trono. Escolhendo a sua sucessão, Lear não escolhe necessariamente qualidades humanas, mas virtudes políticas que possa reconhecer como essenciais para presidir aos destinos do reino. E é possível que, na sua cabeça que se perde em tempestades e voga em direcção à loucura – “Não devias ter sido velho antes de seres sábio”, diz-lhe o Bobo –, haja um pensamento frio de premiar a gestão e cumprimento de expectativas. Mais do que uma decisão afectiva e narcisista, pode também entender-se a desilusão com Cordélia por não aceitar encaixar no perfil de líder que Lear desenhou à sua medida. “E acho que é por isso que esta é, para mim, uma das peças mais pessimistas de sempre”, diz Bruno Bravo. “Talvez ele esteja certo, porque a verdade não pode entrar no jogo político.”

Mesmo quando Edgar, nos últimos instantes, apela à verdade no seu discurso (“Obedeçamos à triste estação / dizendo o que nos vai no coração”), o encenador vê nessas palavras um prenúncio de tempos terríveis, um futuro que se matará a si mesmo. Talvez por Edgar assumir a cartilha de um cinismo político que (muitas vezes) assiste aos sobreviventes deste mundo; quem sabe se por o encontrarmos num ponto ainda anterior a ser vergado e esmagado pela crueza das funções em que será investido.

Nem déspota nem coitado

Antes de Lear, o texto canónico que Bruno Bravo tinha imaginado apresentar no Teatro Nacional D. Maria II era Os Persas, tragédia clássica de Ésquilo. Mas os sucessivos adiamentos do projecto obrigaram a pensar num outro espectáculo e, mais tarde, a aproximação que se deu entre os Primeiros Sintomas e a decana actriz Eunice Muñoz foi sugerindo o Rei Lear com que Bruno Bravo convivia há muito na tradução que Álvaro Cunhal fez durante os anos 50 no cárcere. “Andava à procura de que texto poderia ser interessante e lembrei-me do Lear e daquilo que poderia ser a Eunice dizer estas palavras”, conta. “Só que à medida que o projecto se foi desenvolvendo chegámos à conclusão de que poderia ser demasiado para o estado de saúde da Eunice, apesar de se encontrar bem.”

Em vez de Eunice, é Paula Só que vemos no palco, actriz com uma longa carreira n’O Bando, fazendo-se corpo e voz do monarca que Bruno Bravo resiste a ver quer como déspota, quer como pobre coitado abandonado pelas filhas: “Acho o Lear terrível, ele diz coisas absolutamente incríveis às filhas.” Indiferente ao género, Bruno estava mais interessado na idade do/a protagonista e numa escolha que sublinhasse a hipótese de “Lear poder ser entendido como uma figura ou um signo fundador, a primeira grande figura de poder europeia”. Ainda assim, reconhece, não será despicienda a possibilidade de curto-circuitar uma personagem cujas falas raiam, por vezes, a misoginia, cavando ainda mais fundo um nítido conflito interior.

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Numa anterior incursão em Shakespeare, ao dirigir o Teatro Griot em Tempestade, Bruno Bravo experimentara já este namoro com as palavras que, então, se entregavam a um inebriante onirismo. Em Lear, peça que no seu entender concentra “carne, sangue, emoções maiores do que o homem e poesia”, e é de uma complexidade extremamente exigente, também vê Lear “desvairado na tempestade” – é ele que “ao falar da tempestade a provoca”. Mas é neste torvelinho de “loucura não demencial” em que a personagem se vê metida que o encenador detecta a emergência da verdade e da clarividência. Da mesma forma que é apenas ao cegar que Gloucester, um dos seus súbditos, vê finalmente, depois de lhe arrancarem os olhos.

Lear, a versão traduzida por João Paulo Esteves da Silva que os Primeiros Sintomas levam ao Nacional de 16 de Setembro a 15 de Outubro, desembaraça-se de parte do enredo de leitura mais política, não explorando a retirada de Cordélia para França e o seu posterior regresso a Inglaterra para salvar o pai – encarado como uma invasão dos gauleses. E elimina também os duques e maridos de Goneril e Regan, preferindo centrar as cenas nas três irmãs. Tudo isto tem implicações na forma como a peça caminha para o fim, um fim marcado por mortes, mas mortes pouco claras, ficando a mais essencial num limbo de dúvida e incerteza que recordam a Bruno o cair do pano no western Shane.

Em Shane, filme de George Stevens de 1953, os últimos planos mostram um cowboy que segue no cavalo, cambaleia um pouco e não é claro se foi ou não atingido por um tiro. Também em Lear a morte se instala como algo que não é totalmente líquido, entre o sonho, o delírio e a verdade. A verdade que, durante toda esta peça, é posta em causa e manobrada enquanto ferramenta do poder. Até, por fim, já não ser necessária. 

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