Macacadas jurídicas

O direito à imagem e os direitos de autor são fascinantes mas convém não transformá-los num absurdo.

Em Maio deste ano tivemos uma demonstração prática do crescente direito à imagem graças a um militar da GNR que, no Serviço de Finanças do Montijo, aplicou a manobra mata-leão a um cidadão brasileiro que queria fotografar os funcionários. Ao mesmo tempo que aplicava a manobra de estrangulamento, o GNR esclarecia o recalcitrante cidadão que existia uma coisa que se chamava direito de imagem e, por isso mesmo, se via constrangido a estrangulá-lo.

Esta semana, a realidade brindou-nos com mais uma notável manifestação do direito à imagem. O fotógrafo inglês David Slater e a sua editora Blurb, Inc. fizeram um acordo no processo judicial que lhes era movido nos EUA, por Naruto e pela sua representante, a Fundação PETA (People for Ethical Treatment of Animals). Pediam que fosse reconhecido judicialmente que a autoria de determinadas fotografias, designadas por selfies, era de Naruto e não do fotógrafo David Slater, pelo que devia este — que utilizara aquelas fotografias num livro seu — ser condenado como violador dos direitos de autor de Naruto.

Mas quem é Naruto, este fotógrafo que se afirmava privado dos seus direitos intelectuais? Naruto é um macaco da espécie macaca nigra que vive na Indonésia e que, segundo a PETA, tem seis anos e é muito inteligente.

Neste processo, iniciado em 21 de Setembro de 2015, a PETA, em representação de Naruto, afirmava que as fotografias em causa, que se tinham tornado virais na Internet, eram da autoria do macaco, uma vez que fora ele que carregara no botão do obturador enquanto olhava para a objectiva onde via a sua imagem reflectida. Para a PETA, o uso das mãos de Naruto, em qualquer actividade, resultava de uma atenção concentrada, intencional e com um objectivo e não de qualquer acaso ou acidente. Naruto criara autonomamente as fotografias em causa ao examinar e manipular a máquina fotográfica de Slater, pressionando e libertando várias vezes, propositadamente, o botão do obturador, compreendendo a relação de causa-efeito entre o pressionar do botão do obturador, o ruído do mesmo e a mudança do seu reflexo nas lentes da máquina.

Reconhecido como autor, Naruto deveria passar a poder proceder à exploração económica das fotografias em exclusivo, através da PETA, uma vez que, segundo esclarecia esta organização, Naruto não tinha possibilidades nem capacidade para o fazer sozinho. Essas verbas seriam aplicadas na protecção e defesa dos macaca nigra, uma espécie ameaçada.

Não teve a PETA sorte, já que o juiz William Orrick, em 28 de Janeiro de 2016, rejeitou sumariamente a queixa apresentada por entender — tal como defendiam Slater e a Blurb — que a lei norte-americana da propriedade intelectual não prevê que os animais possam ser titulares de direitos de autor. Esclareceu, ainda, o juiz Orrick que não lhe cabia a ele alterar a lei, mas sim ao Congresso e ao Presidente.

A PETA recorreu, argumentando, entre outras coisas, que também, em tempos passados, os escravos não tinham direitos de propriedade nem de autor. O processo subiu ao Tribunal de Recurso do 9.º Circuito onde, em Agosto passado, se realizou uma audiência a que Slater, residente em Inglaterra, já não compareceu por se encontrar “falido”, segundo as suas próprias palavras, com os custos judiciais e dos advogados no processo.

As questões levantadas pelo colectivo de juízes não deixaram de ser notáveis: quais os danos causados a Naruto pelo facto de Slater se ter intitulado autor das fotografias? E caso Naruto já tivesse morrido, quem eram os seus herdeiros a quem aproveitariam os seus invocados direitos de autor?

Tudo questões que ficaram sem resposta judicial, já que a PETA, provavelmente antecipando a derrota e Slater e a Blurb porque já não suportavam mais custos judiciais, fizeram esta semana um acordo: a PETA desistiu do processo e o fotógrafo e a sua editora obrigaram-se a entregar 25% dos rendimentos provenientes das fotografias de Naruto a organizações protectoras dos animais da sua espécie. Segundo Slater, as fotografias, até esta data, tinham-lhe rendido umas centenas de libras, enquanto o processo já lhe custara muitos milhares de dólares.

O direito à imagem e os direitos de autor são fascinantes mas convém não transformá-los nem num contra-senso nem num absurdo.

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