Iliteracia tecnológica, o novo analfabetismo

É essencial pensar numa nova e profunda alteração do sistema de ensino superior que temos.

O presidente da Universidade de Harvard entre 1869 e 1909, Charles Eliot, foi um dos principais responsáveis pelo prestígio de que essa universidade goza até aos dias de hoje. Além de um influente académico, Eliot foi também um dos principais proponentes da revolução do ensino universitário que ocorreu nos Estados Unidos na transição do século XIX para o século XX. Até perto do fim do século XIX, a educação universitária nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos era essencialmente dedicada ao estudo de matérias clássicas e à memorização de conhecimento, oferecendo aos alunos uma sólida cultura geral mas um conjunto limitado de competências úteis ao crescente número de empresas industriais então existentes.

Durante as décadas que decorreram entre o fim do século XIX e o princípio do século XX, por força das ideias promovidas por Eliot e da pressão financeira imposta às universidades, os cursos universitários tornaram-se progressivamente mais flexíveis, e passaram a incluir uma maior componente de estudos aplicados e de matérias tecnológicas, substituindo os currículos monolíticos baseados em estudos clássicos que existiam até então. Esta alteração nos cursos universitários teve como objectivo tornar estes cursos mais atractivos para os filhos de empresários e industriais, que começavam a olhar com desconfiança para a educação clássica, puramente teórica, que era a prática comum até então.

Muitas das grandes escolas de engenharia, incluindo o MIT, CMU e Caltech, nos Estados Unidos, e o Instituto Superior Técnico (IST), em Portugal, foram criadas nesta época e adoptaram um modelo educacional fortemente baseado nas ideias que Charles Eliot defendeu. Este modelo tem sido espectacularmente bem-sucedido, e tem contribuído para a criação de riqueza nos respectivos países, com um fortíssimo impacto económico e social, que é fácil subestimar. A sociedade moderna não seria o que é hoje não fossem os milhares de engenheiros e cientistas formados pelas modernas universidades. Ao longo do século XX, a formação em engenharia deixou de ser vista como um parente pobre das formações clássicas, e um artigo recente da Forbes intitulava-se “As engenharias são as novas artes liberais”, numa referência explícita à flexibilidade da engenharia como formação básica, útil para qualquer carreira que se queira seguir, característica antigamente atribuída às formações clássicas, tão do agrado das grandes universidades europeias.

Apesar do sucesso deste modelo, mais de um século passado sobre esta revolução, é essencial pensar numa nova e profunda alteração do sistema de ensino superior que temos, que (nos melhores sítios) se encontra ainda essencialmente baseado nas ideias que Charles Eliot defendeu na transição para o século XX. A evolução tecnológica não parou e, pelo contrário, acelerou em diversos aspectos, potenciada pelos grandes avanços trazidos pela engenharia que tiveram lugar durante todo o século XX. Nos dias que correm, o domínio e conhecimento da tecnologia não pode estar restrito a uma pequena fracção da população, engenheiros e cientistas, porque a tecnologia tem um impacto cada vez maior em todos os aspectos das nossas vidas, políticos, sociais, culturais e económicos.

No final do século XX, quem não sabia ler e escrever estava, na prática, impedido de cumprir plenamente o seu papel de cidadão, por estar privado do acesso à informação e de uma forma adequada de manifestar publicamente as suas opiniões. No século XXI, quem não dominar minimamente as questões tecnológicas estará, de forma similar, impedido de desempenhar plenamente o seu papel na sociedade, por estar limitado na sua compreensão das complexas questões económicas, éticas e sociais que as tecnologias modernas colocam.

Mais do que nunca, uma educação superior que tenha uma forte componente tecnológica é essencial para assegurar uma carreira recompensadora e competitiva. O facto de os cursos mais atractivos do ensino superior português serem, desde há dois anos, da área das engenharias, revela bem o valor que os jovens de hoje dão a uma educação com uma forte componente tecnológica. Mas esta tendência de aumento de preferência dos jovens pela área das engenharias, que felizmente se observa em Portugal, embora seja positiva, não é suficiente para assegurar a competitividade futura da economia nacional. Continua a existir, em Portugal e na Europa, uma enorme falta de profissionais com competências em diversas áreas tecnológicas, que vão desde as tecnologias de informação e comunicação até à engenharia mecânica e aeroespacial.

Claro que nem todos podem ou devem ser engenheiros. No entanto, no actual enquadramento económico nacional e internacional, é fundamental que a formação em todas as áreas do conhecimento tenha uma forte componente tecnológica. A familiaridade com a tecnologia valoriza todas as formações, incluindo aquelas que tradicionalmente têm menor componente tecnológica. No estado actual do conhecimento e do desenvolvimento económico da sociedade moderna, qualquer formação, seja ela na área das letras e humanidades, economia, direito, saúde ou desporto deverá ser complementada por uma sólida formação tecnológica, com especial foco nas áreas mais relacionadas com as novas tecnologias.

Essa formação não tem necessariamente de ser assegurada pelo sistema de ensino superior, embora essa fosse, talvez, a solução ideal. Enquanto as nossas universidades não se adaptam a uma nova realidade, modificando os seus cursos e adaptando o seu corpo docente às novas necessidades, existem excelentes alternativas. As novas tecnologias disponibilizaram, na Internet, um vasto manancial de recursos, ao alcance de qualquer um, que poderão ser usados para complementar a formação tecnológica de qualquer estudante ou de qualquer cidadão. Obter formação adicional em áreas como a energia, a Internet, a análise de dados ou a programação de computadores está, agora, ao alcance de qualquer um, apenas à distância do computador mais próximo, e sem quaisquer custos. Grandes universidades e escolas, incluindo o IST, disponibilizam na Internet cursos, ao alcance de qualquer um, sobre as mais variadas matérias.

É importante que as empresas e o próprio Estado reconheçam e valorizem a importância destas formações adicionais e complementares e também que as universidades revejam a sua abordagem ao ensino, ainda tão baseado no modelo, mais flexível que o do século XIX, mas ainda essencialmente expositivo, que foi criado no princípio do século XX. Para além da importância da formação tecnológica, é cada vez mais importante a criação de currículos flexíveis e interdisciplinares, que funcionem com um elevado nível de interactividade, e que permitam aos alunos aprender fazendo. Só desta maneira poderão os jovens, e os não tão jovens, obter as competências que serão necessárias para a economia do futuro, onde o domínio de diversas áreas é fundamental e a tecnologia desempenhará um papel cada vez mais preponderante.

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