O programa político de Jean-Claude Juncker para o futuro da União Europeia

O Presidente da Comissão Europeia proferiu uma alocução de grande densidade doutrinária.

Há uns meses atrás, a propósito da eleição para a presidência do Parlamento Europeu, foi declarada com grande pompa e circunstância a morte da chamada grande coligação entre o centro-direita e o centro-esquerda, que até então havia assegurado durante largos anos a condução de alguns dos aspectos mais importantes da política europeia. Aparentemente estar-se-ia a entrar numa nova fase, marcada pela prevalência da dicotomia esquerda-direita, que se pretendia apresentar como mais adequada ao espírito do tempo.

Ontem, perante o Parlamento Europeu reunido com o propósito de discutir o estado da União Europeia, Jean-Claude Juncker, com um discurso inteligente, sólido e astuto veio alterar substancialmente o cenário político que caracterizou os últimos tempos no velho Continente. O Presidente da Comissão Europeia proferiu uma alocução de grande densidade doutrinária e dotada de uma vasta riqueza do ponto de vista de um programa político concreto para o futuro da União Europeia. Subordinou o seu texto a três ideias essenciais, que identificou com a matriz fundacional e constituinte do projecto europeu: a liberdade, a igualdade e o Estado de Direito. Partindo desse pressuposto, estabeleceu como linha condutora da sua intervenção o propósito do reforço da integração europeia. Nesse sentido, preconizou alterações institucionais e mudanças de comportamento de expressivo significado. Desde logo pugnou pela criação da figura de um Ministro Europeu das Finanças, a quem competiria assegurar a articulação entre as várias dimensões da política económica europeia, desde a monetária à orçamental, e a coordenação da acção desenvolvida pelos diversos Estados-membros nesse domínio. Esta proposta, inevitavelmente muito polémica, não pode ser desligada da intenção proclamada de garantir a integração de todos os países da UE na zona Euro, com substancial reforço do orçamento comunitário e uma progressiva harmonização das políticas fiscais. Estamos perante um assunto ? não há como iludi-lo ? que remete para uma discussão muito séria sobre manutenção ou partilha de soberania.

Ao mesmo tempo Juncker apelou a um reforço do mercado único, de modo a aumentar a competitividade da economia europeia e a atender melhor às necessidades das suas empresas e dos seus cidadãos. A essa preocupação juntou uma outra, de enorme pertinência, relacionada com a necessidade de salvaguardar de forma justa e equilibrada os interesses europeus no contexto das relações comerciais internacionais. A esse propósito acrescentou ainda a vontade de ver a União Europeia transformada num verdadeiro agente regulador do processo de globalização nas suas diferentes dimensões. Tal desiderato só poderá ser atingido se no âmbito dos acordos comerciais presentemente em negociação prevalecer a preocupação de salvaguardar um conjunto de normas sociais, ambientais e sanitárias que correspondem, aliás, aos valores identificadores daquilo que comummente designamos por modelo europeu. É certo que não podemos exigir de um momento para o outro a países mais débeis que se acomodem automaticamente a standards de exigência que nos fomos impondo a nós próprios. Mau grado isso há que salvaguardar a protecção de patamares mínimos de qualidade, em nome do interesse de todos.

Numa outra área, Juncker revelou-se igualmente ambicioso ao preconizar a criação de um serviço de inteligência europeu de modo a assegurar uma cooperação mais eficaz no âmbito da luta contra o terrorismo. Aliás, este discurso aponta para um substancial aumento das responsabilidades europeias nos planos da defesa e da segurança colectiva. Como é compreensível, estamos também aqui perante um objectivo susceptível de gerar enorme discussão pública. Facilmente se instalará em torno de tal tema uma polémica congregadora de várias questões de inegável importância.

Contrariando os receios de alguns cépticos, Juncker dedicou boa parte da sua intervenção a temas de índole social, apresentando propostas inovadoras e até mesmo surpreendentes. De entre elas destaco a criação de uma Inspeção-geral do Trabalho Europeu e a da obrigação de praticar remunerações idênticas em função do local de trabalho. Por outro lado, não esqueceu ? antes valorizou ? a importância do chamado pilar social europeu, matéria que tem sido tratada com particular interesse e qualidade pela deputada socialista Maria João Rodrigues.

O discurso de ontem, se não teve o condão de reeditar a grande coligação, coisa que não passaria decerto pela cabeça de Juncker, nem corresponderia em bom rigor à vontade de ninguém, teve seguramente o efeito de relançar consensos essenciais e imprescindíveis para a redefinição do projecto político europeu. Tendo o mérito de relembrar a importância desses consensos, teve também a virtude de salientar alguns importantes e úteis dissensos. Não terá sido por acaso que as formações mais à esquerda e mais à direita no Parlamento europeu não gostaram nada do discurso, enquanto as forças políticas de cariz mais centrista se reconheceram claramente nele. Contrariamente ao que por vezes se tenta apregoar, um consenso ao centro não significa a anulação da discussão política nem a abolição das divergências de ordem doutrinária ou ideológica. Modifica é a geografia dessas dissonâncias.

Face à amplitude, profundidade e verdadeira novidade das modificações institucionais propostas por Jean-Claude Juncker, e se as mesmas tiverem plena efectivação prática, julgo que se justificará plenamente a realização de um referendo sobre este assunto num país como o nosso, onde nunca se referendou esse aspecto essencial da nossa vida colectiva que tem que ver com a nossa presença no projecto europeu. Abomino a chamada democracia plebiscitária, sou um adepto da primazia da democracia representativa, mas julgo que há momentos em que se justifica plenamente a utilização da figura ? de resto constitucionalmente prevista ? do referendo. Não vejo nenhuma razão para que os partidos políticos temam, nesta fase já tão consolidada da nossa democracia, o recurso a um referendo desta natureza. Assim a Europa avance como Juncker ontem preconizou, que bem poderemos realizar com grande elevação um referendo deveras esclarecedor no nosso próprio país. Oxalá uma e outra coisa aconteçam num futuro relativamente próximo.

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