Manobras militares russas na fronteira da NATO geram medo e conspirações

O Exército russo inicia esta quinta-feira um dos mais importantes exercícios militares dos últimos anos, em clima de desconfiança mútua entre Moscovo e a NATO. No Leste europeu há receio de provocações e até de invasões.

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Exposição de material de tanques de guerra russos perto de São Petersburgo Anatoly Maltsev / EPA

Quando um Governo tem de esclarecer publicamente em várias ocasiões que os exercícios militares que o Exército está a planear não são o prelúdio de uma invasão, falar de simples desconfiança será uma subvalorização. Foi o que aconteceu nas semanas que antecederam as grandes manobras militares russas e bielorrussas que começam esta quinta-feira e duram até dia 20.

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Quando um Governo tem de esclarecer publicamente em várias ocasiões que os exercícios militares que o Exército está a planear não são o prelúdio de uma invasão, falar de simples desconfiança será uma subvalorização. Foi o que aconteceu nas semanas que antecederam as grandes manobras militares russas e bielorrussas que começam esta quinta-feira e duram até dia 20.

Moscovo tem tentado acalmar o nervosismo sentido em algumas capitais de Estados-membros da NATO que nos próximos dias terão a poucas centenas de quilómetros das suas fronteiras uma mobilização maciça de activos militares russos. “Algumas pessoas chegam ao ponto de dizer que os exercícios Zapad vão ser usados como uma rampa de lançamento para ocupar a Lituânia, Polónia ou Ucrânia. Nenhuma destas versões paradoxais tem a ver com a realidade”, afirmou no final de Agosto o vice-ministro russo da Defesa, Alexander Fomin, num encontro com adidos militares ocidentais.

Todos os anos, numa metodologia que remonta à era soviética, o Exército russo organiza os seus principais exercícios numa das quatro regiões militares prioritárias – Zapad, que significa Oeste; Vostok, que é Leste; Tsentr, na região central do país, e Kavkaz, no Cáucaso. Ou seja, de quatro em quatro anos, a Rússia mobiliza milhares de soldados, tanques, peças de artilharia, aviação e alguns navios para testar as suas capacidades de defesa junto à sua fronteira ocidental, partilhada com a Aliança Atlântica. Segundo o Ministério da Defesa, os exercícios da edição deste ano terão lugar na Bielorrússia, e nas regiões russas de Leningrado e Pskov, e também no exclave de Kaliningrado, entre a Polónia e a Lituânia.

Mas desde o último Zapad, em 2013, muito mudou nas relações entre a NATO e a Rússia. A Península da Crimeia foi anexada depois de uma rápida ocupação militar por forças russas; grupos rebeldes tomaram de assalto grande parte do Leste da Ucrânia, com alegado apoio de Moscovo; a intervenção do Exército russo na guerra na Síria alterou de forma profunda o desenrolar do conflito a favor do regime de Bashar al-Assad; o Ocidente diz-se vítima de uma ciberguerra lançada por operacionais ligados ao Kremlin para desacreditar as suas instituições democráticas, com destaque para a alegada interferência russa nas eleições dos EUA.

Desconfiança

É neste clima de profunda desconfiança entre os dois blocos, com ecos da Guerra Fria, que as manobras militares em ambos os lados ganham novos contornos. Na sequência da anexação da Crimeia, a NATO reforçou a sua presença nos países limítrofes a Leste, enviando batalhões de “intervenção rápida” que vão rodar entre os três Estados bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e a Polónia. Em Julho, um exercício liderado pelos EUA mobilizou 25 mil soldados provenientes de mais de vinte países que se dividiram entre a Hungria, Roménia e Bulgária.

A controvérsia começa desde logo pelas estimativas quanto ao número de soldados envolvidos no Zapad. O número que está a causar calafrios nas chancelarias europeias é cem mil. A ministra da Defesa alemã, Ursula von der Leyen, foi a dirigente mais recente a referir-se a esta estimativa, dando origem a declarações de “perplexidade” por parte do Governo russo.

Moscovo diz que o Zapad vai envolver 12,700 soldados, dos quais apenas 5500 são russos e os restantes bielorrussos, e 680 equipamentos militares (tanques, peças de artilharia, aeronaves, etc.). No meio de relatos tão contraditórios é difícil discernir a verdadeira dimensão dos exercícios. De qualquer forma, “o número de cem mil soldados é muito ao lado”, disse ao site Business Insider o analista Mark Galeotti. As diferenças nas estimativas finais parecem estar relacionadas com as metodologias de contabilização. A par do Zapad, o Exército russo vai realizar várias manobras mais reduzidas nas proximidades e também estão programados exercícios de defesa civil articulados com a simulação de um cenário de guerra.

Aumentar

“Essa participação pode ir desde a instalação de um campo de tiro até ficar na base sem fazer nada, e mesmo assim ser contabilizada pelos analistas ocidentais como parte do exercício”, escreve o investigador do Instituto Kennan, Michael Kofman.

Os números fornecidos pelo Ministério da Defesa russo sugerem, por outro lado, que a dimensão real possa ser superior. O objectivo da estimativa é impossibilitar a presença de observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), ao abrigo do Documento de Viena – que regula os exercícios militares no continente e obriga ao acolhimento de observadores internacionais para manobras que envolvam mais de 13 mil soldados. Uma das estratégias usadas por Moscovo é dividir um grande exercício em esquemas mais pequenos que nunca ultrapassem o limite fixado.

Bilhete de ida

Durante o Zapad, as forças russas terão pela frente um cenário de “desestabilização” externa nas suas fronteiras a partir de três países fictícios – Veishnoria (noroeste da Bielorrússia), Vesbaria (parte da Lituânia) e Lubénia (parte da Polónia). Uma das preocupações levantadas durante as semanas que antecederam os exercícios é a suspeita de que o Exército russo utilizasse as manobras como um subterfúgio para deixar tropas estacionadas na Bielorrússia para apertar o controlo sobre o regime de Aleksandr Lukashenko.

O ministro da Defesa estónio, Margus Tsahkna, chegou a dizer, em Abril, que os militares russos enviados para a Bielorrússia tinham “um bilhete só de ida”. O comandante das forças norte-americanas na Europa, tenente-general Ben Hodges, disse que os exercícios militares não eram mais que “um cavalo de tróia” para forçar Minsk a aceitar a presença militar russa de uma forma permanente no país.

A generalidade dos analistas confere pouca validade à tese da “invasão sub-reptícia”, mas Lukashenko parece não querer correr riscos. O Governo bielorrusso chamou observadores estrangeiros para os exercícios no país e fixou em três mil soldados o limite máximo de militares estrangeiros no seu território. Para além disso, no início do ano foi aprovada uma lei que enquadra como um acto de agressão o envio por outros países de “forças armadas irregulares” – uma referência óbvia aos grupos de combatentes russos que em 2014 apoiaram os grupos rebeldes ucranianos e que Kiev dizem ter sido enviados pelo Kremlin.   

Mais do que tratar-se da rampa de lançamento para uma invasão ou de um ensaio geral para uma guerra com a NATO, o Zapad parece servir como mais um capítulo da “guerra de informação” entre a Rússia e a União Europeia, como conclui uma análise do Centro de Estudos do Leste, sedeado em Varsóvia. “A Rússia tratou as preparações para o Zapad-2017, por um lado, como parte da intimidação do público geral nos países que fazem fronteira directa com a Bielorrússia e a Rússia, através de notícias transmitidas através dos media bielorrussos e ucranianos. Por outro lado, ao desvalorizar os relatos acerca da escala da ameaça militar, está também a aprofundar as divisões entre os ‘novos’ e ‘antigos’ membros da UE, por via de uma onda de alegada histeria anti-russa gerada pelos primeiros.”

Se os governos europeus mostram nervosismo, os habitantes das regiões mais próximas da Rússia parecem estar muito mais calmos. “Não é perigoso”, disse ao Politico Boris Medveznikov, um militar estónio-russo de Narva, cidade que faz fronteira com a Rússia. “Vocês foram mal informados acerca dos nossos vizinhos. A Rússia é muito forte, mas nós somos europeus.”