Chegou o tempo do ciclismo pós-A.C.

No domingo, em Madrid, despediu-se o "último louco aventureiro" do ciclismo mundial. Alberto Contador colocou um ponto final numa carreira de 15 anos e deixou o pelotão órfão do maior "voltista" da última década.

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LUSA/Kiko Huesca

A Vuelta terá marcado o adeus de Alberto Contador. Dizemos terá porque não poderia ser de outra maneira. Já lhe ouvimos tantos discursos de despedida, tantos “agora é que é, até nunca mais” que, inconscientemente, ainda é difícil acreditar que a história velocipédica do ciclista mais emblemático na era pós-Armstrong tenha mesmo chegado ao fim. A haver algo a apontar-lhe, será o sucessivo adiar de um adeus evidente para (quase) todos — ainda assim, voltou a disparar, pela última vez, no sábado, no alto do Angliru, naquele que foi o mais perfeito dos desfechos para uma gloriosa carreira de 15 anos.

O pecado que condenou Contador foi a obsessão pelo Tour (mais precisamente por aquele, o de 2010, que perdeu na secretaria devido a um positivo por clembuterol). Embora tenha conquistado mais três grandes Voltas após aqueles momentos dramáticos — foi suspenso preventivamente, voltou à estrada, ganhou o Giro 2011 e, a 6 de Fevereiro de 2012, viu o Tribunal Arbitral do Desporto condená-lo a dois anos de suspensão, com efeitos retroactivos, e rasurar todos os triunfos que somou nos meses precedentes —, El Pistolero nunca mais foi o mesmo na prova que mais desejava vencer. O que lhe sobrava em coração, garra, loucura q.b, faltava-lhe em poder de fogo.

Longe ficaram os tempos em que cada pedalada de Alberto — no pelotão, o seu apelido caiu, com todos, colegas e fãs, a tratarem-no apenas pelo primeiro nome — era mortífera e equivalia a (muitos) segundos perdidos para os adversários. Ame-se ou odeie-se, a despedida do ciclista nascido na localidade madrilena de Pinto, a 6 de Dezembro de 1982, deixará um vazio profundo no pelotão.

Último herdeiro da estirpe do ciclismo de ataque, Contador marcou uma geração, que cresceu a vê-lo erguer-se na bicicleta, acelerar, numa passada inconfundível, uma e outra vez, nas inclinações mais pronunciadas, para se tornar o terceiro ciclista na história (e o mais novo) a ganhar as três grandes Voltas em apenas 15 meses (estreou-se no Tour, em Julho de 2007, prosseguiu com o triunfo no Giro, em Junho de 2008, e completou o feito com a “dobradinha” na Vuelta, em Setembro de 2008).

Ou o primeiro espanhol, e o quinto corredor de sempre, a completar o trio Tour-Giro-Vuelta. Ou ainda, o sexto mais vitorioso da história nas três Grandes, com os seus sete ceptros — convicto de que foi injustiçado no caso do clembuterol, o madrileno continua a reivindicar para si os dois títulos de que foi desapossado.

“Sem dúvida que ganhei nove [grandes Voltas]. Olhem para as camisolas do Tour 2010 e do Giro 2011 [penduradas na parede da sua casa]. Venci as duas corridas de uma forma limpa e honesta, apenas com trabalho e sacrifício. As camisolas estão ali penduradas como exemplo”, disse, em 2015, numa entrevista ao The Guardian. Contador nunca abdicou de proclamar-se inocente, como nunca desistiu de lutar por nada na vida e na carreira. Depois de sobreviver a um aneurisma cerebral (2004), ao vendaval que foi a Operación Puerto, à “guerrilha” com Lance Armstrong no Tour 2009, a segunda Grande Boucle que ganhou, e à condenação do Tribunal Arbitral do Desporto, regressou à estrada determinado a mostrar que, fora da secretaria, continuava a ser rei e senhor da Volta a França. Mas o seu tempo, o do ciclismo puro, sem medidores de potências e cálculos científicos, tinha passado. O erro de Alberto foi não saber aceitá-lo.

O Tour tornou-se a Kryptonite do até então super-Contador. Apesar de ter continuado a ser uma figura de proa nas principais provas de uma semana da temporada, e até um dos mais firmes candidatos à geral das grandes Voltas em que participou, naquela que era a sua corrida fetiche acumulou resultados decepcionantes, abandonos e ataques estéreis, tornando-se uma pálida imagem do grande escalador que marcou a última metade da década de 2000.

Os sucessivos desaires transfiguraram-no. O homem silencioso, avesso às novas tecnologias e à exposição mediática, converteu-se num perito em desculpas (esfarrapadas), num alvo fácil de piadas maldosas, como as que teve de suportar do seu anterior patrão, Oleg Tinkov. Quem cresceu com ele, e padeceu com o seu declínio — a vitória de sábado, a 68.ª do seu palmarés, interrompeu uma sucessão de 13 meses sem ganhar —, lamentará que o seu “herói” não tenha sabido reformular objectivos ou despedir-se quando estava no auge.

Ainda assim, há que agradecer-lhe por, até ao final, ter-se mostrado fiel aos seus princípios: perdendo ou ganhando, teve sempre a coragem de arriscar tudo para dar espectáculo. “Ele traz tanta emoção às provas... Vai ser mais fácil para mim [correr] quando ele não estiver por perto”, reconheceu Chris Froome, num elogio genuíno àquele que foi um dos únicos (senão o único) a ousar atacá-lo nas maiores de todas as Voltas.

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