Em conversa de bar, garimpeiros gabam-se de chacinar uma tribo da Amazónia

Nos cantos mais recônditos da floresta há ainda povos isolados, que não conhecem o mundo moderno. Os primeiros contactos podem ser mortais, como terá acontecido no estado do Amazonas, no Brasil.

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Índios da tribo que terão sido alvo de massacre Funai-Frente de Proteção Etno-Ambiental Envira/REUTERS

Não fosse o alarde provocado num bar por um grupo de garimpeiros a trabalhar numa exploração ilegal de ouro na Amazónia, o mundo poderia nunca ter sabido que parece ter sido um massacre. Os garimpeiros diziam ter encontrado membros de uma tribo que nunca teve contacto com a civilização exterior, perto da fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia.

Embora fossem menos que os índios – que seriam cerca de dez – os garimpeiros manietaram-nos e mataram-nos a todos, revela Carla de Lello Lorenzi, porta-voz da delegação brasileira da Survival International, organização não-governamental de defesa dos povos indígenas.

Segundo Lorenzi, os mineiros cortaram os corpos aos pedaços para evitar que flutuassem, e atiraram-nos para o rio Jandiatuba.

Os mineiros tinham consigo ferramentas e ornamentos indígenas, o que corrobora a sua história.

Perturbada pelo que estava a ouvir, uma pessoa presente no bar gravou a conversa dos garimpeiros e entregou a gravação às autoridades. Se a investigação subsequente confirmar o relatado, tratar-se-á de um dos maiores assassínios em massa de povos isolados das últimas décadas.

Os defensores de medidas de protecção mais rigorosas dizem que o alegado massacre é prova evidente de que o Governo brasileiro não está a fazer o suficiente para proteger as mais de cem tribos que nunca estabeleceram contacto com o mundo exterior – e que não têm qualquer desejo de o fazer.

“Se estes relatos se confirmarem, [o Presidente Michel Temer] e o seu Governo têm uma grande responsabilidade por este ataque genocida”, afirma Stephen Corry, director da Survival International, acrescentando que o executivo fez cortes na Funai, a Fundação Nacional do Índio, deixando-os “à mercê de milhares de invasores – mineiros, fazendeiros e madeireiros – desesperados para roubar e pilhar as suas terras.”

“Há anos que as terras destas tribos deviam ter sido adequadamente identificadas e protegidas – o apoio declarado do Governo àqueles que querem abrir as propriedades indígenas é absolutamente vergonhoso, e está a atrasar em décadas a luta pelos direitos indígenas no Brasil.”

De acordo com o New York Times, o governo fechou cinco das 19 bases usadas para monitorizar as tribos isoladas e evitar incursões de mineiros e madeireiros. Três das cinco instalações encerradas situavam-se no Vale do Javari, lar de mais tribos isoladas do que qualquer outro local no mundo.

Por razões óbvias, pouco se sabe sobre o grupo indígena que foi alvo dos alegados homicídios.

Lorenzi afirma que na região são conhecidos por Flecheiros – “aqueles que atiram flechas” – mas a sua língua e costumes, bem como a forma como interagem com pelo menos outras duas tribos isoladas que habitam a mesma área, continuam a ser um mistério.

Os membros das tribos não são as únicas pessoas naquela zona da Amazónia, diz Lorenzi. Embora a exploração mineira seja proibida, os garimpeiros trouxeram para o local equipamento de terraplanagem, deixando atrás de si enormes crateras que podem ser vistas do ar.

Segundo o governo, os mineiros trouxeram também a violência, sendo responsáveis por ameaças, prostituição infantil e assassínios.

Mesmo que pacífica, até a sua simples presença nas terras protegidas pode ser perigosa para as tribos isoladas, pois os seus membros não dispõem de imunidade contra as doenças que os mineiros e os madeireiros levam consigo.

Todo e qualquer contacto pode ser conflituoso ou até violento, e as tribos estão geralmente em desvantagem porque, como Lorenzi diz, “normalmente são arcos e flechas contra armas de fogo.”

Dado que envolvem dois grupos que evitam falar às autoridades, é sempre difícil obter informações precisas sobre estes contactos. Mesmo assim, às vezes surgem relatos de grandes atrocidades. A Survival International documentou a história de Marisa e Leida Yanomami, sobreviventes do massacre de Haximu em 1993.

“Os mineiros mataram os nossos irmãos e o nosso pai com machetes; outros foram mortos a tiro”, contaram à organização. “Depois de matarem dez pessoas, no início da guerra, nós escondemo-nos no nosso shabono [construção comunal dos índios Yanomami], mas no dia seguinte os mineiros voltaram a aparecer.”

Numa declaração no seu site, a Fundação Nacional do Índio, órgão estatal para os assuntos indígenas, diz ter dado instruções ao Ministério Público para que investigue as recentes alegações.

Também o Governo fez eco da sua última operação para proteger as terras protegidas, tendo encerrado em Agosto uma exploração mineira ilegal. As forças de segurança destruíram quatro máquinas de dragagem e aplicaram às empresas uma multa de um milhão de dólares por crimes ambientais.

As investigações não são fáceis de levar a cabo. O local dos alegados assassínios, por exemplo, fica a 12 horas de viagem por barco, durante a estação seca. E é preciso lidar com um grupo de pessoas com a sua própria língua e com uma centenária desconfiança relativamente a forasteiros.

Até os detalhes sobre a chacina são escassos, diz Lorenzi. E este vácuo de informações é a causa de outro receio dos activistas: que este tipo de encontros violentos aconteça muito mais frequentemente do que se sabe.

“É muito provável, sim, porque é tão difícil de arranjar provas. São tribos isoladas e sem contacto com o exterior contra mineiros ilegais que pensam que podem fazer o que quiserem. E infelizmente, muitas vezes podem.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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