Coreia do Norte, histeria global

O mundo parece padecer de uma histeria que poderá ser ainda mais perigosa para a segurança internacional do que o beligerante estilo norte-coreano.

O problema da Coreia do Norte é real e global. Mas temos que manter a cabeça fria, a sensatez, a sensibilidade estratégica e a perceção psicológica de como se gerem e resolvem situações deste tipo, que parecem centralmente militares mas que não o são. Naturalmente são preocupantes os programas de produção de armamento nuclear da Coreia do Norte, o sucesso na miniaturização das suas ogivas e o aperfeiçoamento dos seus mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) e, bem pior, dos respetivos modelos para lançamento por submarinos (SLBM). Contudo, o mundo parece padecer de uma histeria que, na verdade, poderá ser ainda mais perigosa para a segurança internacional do que o beligerante estilo norte-coreano.

A Coreia do Norte, apesar da sua verbalização agressiva e da acumulação de perigosíssimo armamento nuclear ofensivo, não tem qualquer intenção real de iniciar um ataque contra os Estados Unidos, a Coreia do Sul, o Japão ou outro país. Como já comentei anteriormente neste espaço e noutros países, este é um assustador jogo de guerra psicológica entre os norte-coreanos e o resto do mundo, que essa nação ganha sistematicamente e com a qual obriga todos a cederem-lhe apoios materiais de que necessita, designadamente alimentos, energia e dinheiro. Exatamente isso. O regime da Coreia do Norte tem garantido a sua sobrevivência à custa de obrigar os seus inimigos, bem como países como a China, a disponibilizarem os seus meios de sobrevivência comuns. Parece um regime apenas louco, mas nesta perspetiva é também genial.

Todos os passos evolutivos que a Coreia do Norte tem evidenciado recentemente na tecnologia nuclear e de mísseis eram absolutamente previsíveis na sequência de um longo processo. O que é invulgar no período mais recente é a aceleração que, deliberadamente, imprimiu a todas essas dinâmicas, não apenas àquelas que são mediaticamente enfatizadas mas igualmente a outros meios muito poderosos como o da ciberguerra.

De facto, esta aceleração agressiva é parcialmente consequência da inabilidade politica e diplomática de quase todo o mundo, particularmente da administração Trump. Como habitualmente, a União Europeia, completamente privada de ideias inteligentes e de genuína liderança estratégica, nem conta. A ONU é a irrelevância que se conhece ao longo dos anos mas que é educado fingirmos todos não ver. Surpreendentemente, a Rússia e a China estão a ser os mais prudentes e sensatos.

O programa nuclear da Coreia do Norte começou em 1965 e visava contribuir para a segurança e autonomia nacional de defesa. Nessa altura tinha aliados seguros. Agora não os tem e é um país isolado. Por sua culpa, certamente, mas a realidade é que a Coreia do Norte sente que muitos países desejam aniquilá-la. E sabem bem (o que a opinião pública mundial desconhece) que o seu país já teria, efetivamente, sido atacado e invadido, se não tivesse, entretanto, acumulado os temíveis meios militares que agora possui. Isto é, a recente aceleração dos programas nucleares norte-coreanos acompanhou a retórica também crescentemente agressiva da administração Trump.

Será verdadeiramente inteligente agir perante a Coreia do Norte, que se sente encurralada e ameaçada de extinção, semeando uma chuva de sanções (a que resistirá sem pestanejar) e ameaças estrangeiras de arrasar o país, intensificando ameaçadores exercícios militares americanos e sul-coreanos às suas portas? É difícil imaginar uma fase de maior acefalia mundial do que esta. A imagem de qualidade, de liderança e de inteligência estratégica dos políticos mundiais dificilmente é beneficiada com toda esta disfunção.

Esta agressividade sobre a Coreia do Norte, que se sente encurralada e em risco de sobrevivência, é contraproducente e só a obriga a aumentar a sua dissuasora capacidade de destruição. Os norte-coreanos não tomarão a iniciativa de atacar, mas se forem atacados responderão nuclearmente, porque nesse momento saberão que serão arrasados.

Os Estados Unidos foram, inclusive, extremamente descuidados ao planearem, como primeira opção de ataque, o uso dos bombardeiros B-1 estacionados na base de Guam, para bombardearem bases de lançamento de mísseis na Coreia e outras instalações vitais. Perceberá agora a opinião pública por que motivo a Coreia do Norte recentemente referiu poder atingir a ilha de Guam? A insensatez de Trump parece não ter limites. As ameaças que tem equacionado levaram a Coreia do Norte a passos de secretismo extremamente perigoso na movimentação e operacionalização nuclear dos seus submarinos, capazes de, a partir de um indeterminado ponto do oceano, lançarem mísseis nucleares de retaliação sobre os Estados Unidos ou outras regiões do mundo. As bases de submarinos de Sinpo e Mayang-do têm registado uma atividade febril e ultra-secreta. Há semanas, os responsáveis militares norte-americanos ficaram em pânico quando um daqueles submarinos desapareceu. A sensação que sedimento é a de uma completa desorientação estratégica e insensatez dos políticos americanos, europeus, japoneses e sul-coreanos.

Fico preocupado quando vejo políticos europeus que não têm a mais ínfima noção do poder de ciberguerra com que, em desespero, a Coreia do Norte poderá retaliar, envolvendo nós inteligentemente localizados fora daquele país e imunes a bombardeamentos de que possa ser objeto.

A minha opinião é quase diametralmente oposta às decisões políticas dos EUA e da Europa. Temos que descomprimir a tensão em lugar de a acirrar, negociar fora dos canais diplomáticos governamentais (o que poderá ser imensamente mais eficaz e a que os norte-coreanos estão recetivos de forma específica) e, por essa via, abrir uma sequência de passos que possam, em menos de uma década, solucionar completamente esta tensão. A desnuclearização da península coreana será, no entanto, inexequível durante muito tempo, até que os norte-coreanos sintam que o mundo deixou, consistentemente, de ser uma ameaça. Mas a real pacificação é possível, talvez em menos tempo do que a atual histeria coletiva parece evidenciar. E a reunificação das Coreias, apesar de muito mais complexa do que se pensa, também, numa fase um pouco posterior, poderá ter início muito rápido embora por fases sucessivas que exigirão tempo e paciência.

Em síntese, o “conflito” com a Coreia do Norte é menos real do que a agressividade pública tenta veicular. Mas se o mundo não inverter sensatamente a sua própria vertigem de recente conflituosidade, corremos o risco de, assim, vir a induzir um conflito bem real, que em poucos dias poderá mudar horrorosamente o mundo e matar muitos milhões de seres humanos. É difícil não perder a paciência com a Coreia do Norte, mas temos que ser adultos e muito inteligentes.

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