As escutas telefónicas no direito penal

Os portugueses têm o direito de conhecer a interpretação que a larga maioria dos juristas tem sobre esta questão.

Quando se fala do processo Face Oculta logo vem à mente a destruição das escutas telefónicas, ordenada unilateralmente por Noronha do Nascimento, arrogando-se a única entidade judicial, no nosso sistema jurídico, para o decidir sobre a matéria. Para já apenas temos a “jurisprudência” de Noronha do Nascimento, ao chamar a si o poder exclusivo de decidir definitivamente a destruição ou não das escutas telefónicas. Efectivamente, a questão mais emblemática é saber se o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) pode decidir, definitivamente, sobre a destruição ou não das escutas telefónicas ao Presidente da República (PR), ao presidente da Assembleia da República (PAR), ou do primeiro-ministro (PM), ou se das suas decisões, nesta matéria, cabe recurso para a secção criminal do STJ. Uma vez que Noronha do Nacimento não permitiu, arbitrariamente, uma ampla discussão processual através de recurso, afigura-se que o caso merecia uma interpretação autêntica, ou seja, uma interpretação do órgão que produziu a lei. De todo o modo, os portugueses têm o direito a conhecer aquela interpretação que a larga maioria dos juristas têm sobre esta questão.   

Por mais esclarecido e diligente que seja, o legislador nunca consegue regular diretamente todas as relações da vida social merecedora da tutela jurídica. E, mesmo nas situações previsíveis, por vezes, há casos que escapam à previsão do legislador. É por isso que o Código do Processo Penal (CPP), no seu art. 4.º, estipula que aos casos omissos se aplique primeiro a analogia, depois as normas do processo civil e, na falta delas, os princípios gerais do processo penal.

Ora, o legislador atribuiu ao juiz de instrução criminal o poder de autorizar as escutas, bem como o poder de proceder à sua destruição, em casos concretamente especificados. Porém, tratando-se da intercepção, gravação e transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o PR, o PAR ou o PM, o legislador concedeu esse poder de autorização e a respectiva destruição ao presidente do STJ, submetendo-o às normas dos arts. 187 a 190 do CPP (requisitos da admissibilidade das escutas, formalidades operacionais, extensão e nulidades), normas aplicáveis a todas as escutas, sem excepção. Daqui resulta que o legislador colocou a intervenção do presidente do STJ no mesmo plano do juiz criminal de primeira instância, mas inserida no âmbito da orgânica da competência do STJ. Analogicamente, assim como das decisões do juiz de instrução criminal de 1.ª instância cabe recurso para o tribunal superior, do mesmo modo, dos despachos do presidente do STJ cabe recurso para o orgão jurisdicional superior, integrado na orgânica do STJ, ou seja, para as respectivas secções criminais, as quais, aliás, funcionando em pleno, já é o tribunal competente para julgar criminalmente o PR, o PAR e o PM.

A questão das escutas tem sido tratada no âmbito da sua destruição. Porém, imagine-se, por hipótese, que em determinado caso o presidente do STJ autoriza as escutas a uma das três referidas entidades, mas tal autorização ou destruição está ferida de nulidade (art.190), por violação dos requisitos e condições referidos nos arts. 187, 188 e 189 do CPP. Certamente ninguém aceitará que nenhuma destas entidades não possa recorrer dessa eventual nulidade e sejam, deste modo, prejudicados nos seus direitos fundamentais.

A não admissão de recurso das decisões do presidente do STJ nas escutas telefónicas às referidas entidades leva ao absurdo de se ter de concluir que enquanto o cidadão comum tem direito de recurso das decisões proferidas pelo juiz de instrução, ao PR, ao PAR e ao PM é-lhes negado tal direito e, por isso, impossibilitados de verem corrigidos os eventuais erros nos despachos do presidente do STJ, ficando com menos garantias de defesa que o cidadão comum. Por isso, não é crível pensar que o legislador quis colocar nas mãos de uma só pessoa a decisão sobre uma matéria de tanta importância e melindre.

A mesma interpretação resulta dos preceitos que dispõem sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade dos recursos (arts. 399 e 400 do CPP), onde se estabelece o princípio geral de que “é permitido recorrer dos acordãos, sentenças e despachos, cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”, sendo que o artigo 400 refere taxativamente quais são as decisões que não admitem recurso, não constando desse elenco as questões decididas pelo presidente do STJ, relativamente às referidas escutas. Para além disso, há que mencionar a jurisprudência uniforme do STJ, que durante décadas vem decidindo no sentido de que “não são aplicáveis em processo penal as regras do processo civil sobre as limitações dos recursos. E que, interposto recurso, domina o princípio do conhecimento amplo, sem restrições, das questões ventiladas no processo, só existindo as expressamente previstas”. Também nesse sentido tem sido a opinião dos nossos professores de direito.

A questão, tendo como centro as três maiores figuras do Estado, não pode ficar na indefinição resultante da interpretação arbitrária de Noronha do Nascimento, uma figura menor relativamente às figuras em causa, pelo que se justifica a produção de uma lei interpretativa. 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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