“É tudo fake news?”

Se antes o medo era que os adolescentes acreditassem em tudo o que lêem online, os professores temem agora que os seus alunos cresçam sem acreditarem em nada do que lêem. Pior ainda, a acharem que a diferença entre a verdade e a mentira é uma questão de escolha.

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O Outono de Chris, de 16 anos, vai ser passado nas aulas de Matemática IB, Economia IB, Literatura IB e Física IB, na escola secundária de Annandale, no norte da Virgínia. “IB” significa que as disciplinas fazem parte do exigente programa do International Baccalaureate [Bacharelado Internacional, fundação académica com sede em Genebra], o que quer dizer que Chris é, nas suas próprias palavras, “super-inteligente”. Chris está de tal modo determinado em ser inteligente que escolheu passar os últimos dias do Verão num programa de preparação do IB, de modo a valorizar a futura candidatura a uma universidade. Daí que esteja agora enfiado numa sala de aula onde ele e os seus colegas super-inteligentes estão prestes a descobrir que existem assuntos em que afinal não são assim tão inteligentes.

“O que são fake news?”, pergunta Kim Ash, a monitora da sessão daquele dia e educadora no Newseum, o museu interactivo de comunicação e jornalismo em Washington D.C. que este ano organizou a iniciativa “Lutar contra as fake news”. Quando a iniciativa arrancou em Maio, um dos meses menos requisitados para visitas de estudo, ficou quase imediatamente lotada até ao fim de Junho. Nessas sessões, que decorreram num anfiteatro na cave do museu, ficou claro que quer usassem bonés com a inscrição “Make America Great Again” ou T-shirts com a cara da juíza do Supremo Ruth Bader Ginsburg, os estudantes tinham dificuldades em distinguir a realidade da ficção.

A pergunta de Kim – “O que são fake news?” – suscitou um mar de mãos que se ergueram em uníssono. Kim Ash deitou os olhos à sala repleta de ambiciosos caloiros, mas também de finalistas. Claro que já tinham ouvido falar de fake news! Desde que tomou posse, o Presidente Donald Trump já tweetou a expressão mais de 100 vezes. Aparece em anedotas e T-shirts, e é o assunto mais debatido nas visitas ao museu, mesmo por visitantes estrangeiros. Nos dias que correm, há quem grite “Fake news!” só porque é giro.

Entre verdade e mentira

Os jovens sentados à frente de Ash estão a atravessar os anos mais importantes para a sua formação a ouvir que as notícias são fake. E isto é um problema novo para os professores. Se antes o medo era que os adolescentes acreditassem em tudo o que lêem online, os professores temem agora que os seus alunos cresçam sem acreditarem em nada do que lêem – ou, pior ainda, a acharem que a diferença entre a verdade e a mentira é uma questão de escolha.

Mas Kim Ash mantém-se optimista sobre o futuro da relação dos EUA com a verdade. Costuma dizer aos colegas mais inquietos que “as feridas saram ao ar livre", querendo com isto dizer que os assuntos precisam de debate para a verdade vir ao de cima. Pega numa pilha de artigos impressos e distribui pelos estudantes da secundária de Annandale. A tarefa: descobrir quais os verdadeiros.

Integrado num grupo ao fundo da sala, Chris passa os olhos por cada artigo. Lê os títulos, observa as fotografias, analisa os primeiros parágrafos.

– “São todas fake news”, anuncia aos amigos.

Mas não são. Entre as falsas estão notícias verdadeiras, que abarcam temas desde água cor-de-rosa a jorrar de torneiras a um tornado a fazer espirais em torno de um arco-íris, ou ao Presidente das Filipinas a incentivar os cidadãos a matarem traficantes de droga.

Em vez de usar artigos e fotografias dos principais meios de comunicação, Ash escolheu fontes menos conhecidas, apenas com presença online e do tipo susceptível de aparecer nas redes sociais de Chris e dos colegas.

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Etudantes da secundária de Annandale participam na sessão do Newmuseum “Lutar contra as fake news”

O caso do gorila Harambe

Ruth, também com 16 anos, está sentada em frente a Chris examina cuidadosamente o conjunto de títulos. Mesmo não querendo necessariamente concordar com o colega, há muito que sente as mesmas suspeitas sobre notícias falsas. Há por aí muitas pessoas a tentarem que clickemos em algo, diz. E ela até costuma clickar. Simplesmente não parte do princípio de que o que está a ler seja verdade.

Pega na história sobre a água cor-de-rosa. Parece-lhe improvável. É certo que está acompanhada por uma fotografia, mas pode ter sido alterada no Photoshop. Por isso, coloca-a no monte das fake.

É aí que o grupo põe todos os artigos que examina, até que uma manchete chama a atenção de Ruth: “Harambe, um gorila morto, recebeu mais de 15 mil votos para presidente dos Estados Unidos”. Ao lado do título, uma fotografia do primata, famoso na Internet e inspiração para memes após a sua morte num jardim zoológico de Cincinnati no ano passado.

– “Isto não aconteceu mesmo?”, pergunta ao grupo. Lembra-se de na escola ter ouvido algo acerca de Harambe e as eleições.

O seu amigo Ayman faz uma pesquisa online pela fonte assinalada por baixo do título, um site chamado Daily Snark.

– “Está verificado pelo Twitter”, repara. “Esta pode ser verdadeira.”

Chris acede a DailySnark.com, onde se depara com uma página a abarrotar de outras notícias aparentemente plausíveis. Escolhe uma que menciona a substituição do defesa dos Jacksonville Jaguars, o que lhe parece um assunto bastante normal para ser noticiado. Rapidamente todos estavam convencidos – excepto o seu colega Idris.

– “Não é possível”, diz Idris assertivamente.

Os pais de Idris acompanham regularmente as notícias: de manhã o Today Show, na NBC; à noite, a CNN. Nunca tinha prestado grande atenção até ao segundo ano do secundário, em que teve uma disciplina de política que, diz, tornou as notícias muito mais interessantes. Agora, informa-se sobre o que se passa no mundo dez ou vinte vezes por dia – no Twitter. Foi aí que aprendeu a não confiar em qualquer conta, mesmo que no nome apareçam as palavras “notícia” ou “diário”.

– “Como é que um gorila pode ter recebido votos se não estava no boletim?”, pergunta à mesa.
– “Já viste um boletim de voto das presidenciais?”, responde Ayman.
– “Tu nem sequer podes votar”, riposta de imediato Idris.
– “Sim, mas eu já vi um”, interrompe Chris, lançando-se numa explicação sobre os write-in votes [é possível em alguns estados escrever o nome de candidatos nos boletins de voto]. “Acreditem em mim.”

Idris olha para Ruth.

– “Não estou a gozar”, diz ela. “Esta é verdadeira.”
– “Então sou eu que sou um idiota”, concede Idris.

Lá à frente, Ash anuncia que o tempo terminou. “Pousem as canetas e os lápis”, pede. Analisa cada artigo: falso, verdadeiro, falso, falso. Mostra aos estudantes pequenas características que os podiam ter ajudado a detectar as notícias falsas, como citações de “especialistas” cujo nome é impossível encontrar noutras fontes online.

Mas vê-se rapidamente na urgência de ter que os convencer de que algumas das notícias são verdadeiras. A história da água cor-de-rosa, por exemplo – se tivessem pesquisado, tê-la-iam encontrado em várias fontes noticiosas fidedignas.

“A vossa intuição só funciona até certo ponto”, diz-lhes. “Não se sintam intimidados. Se estiverem na dúvida se uma notícia é verdadeira ou não, está no vosso poder descobri-lo.”

Chris levanta o braço.

– “E a notícia sobre o Harambe?”, questiona.
– “Falsa.”

Chris dá um murro na mesa.

– “Eu disse-vos!”, exclama Idris.

Ash acede ao DailySnark.com no seu écran e abre a secção “Sobre”, onde está explicado que o site é uma “sátira de desporto, notícias e entretenimento”.

Derrotada, a mesa de Chris põe o artigo sobre Harambe no monte das fake news. Das que haviam analisado, era a única que achavam ser real.

“Um ovo faz tão mal como cinco cigarros”?

Finda a sessão, há hambúrgueres, batatas fritas e pizza para todos na cafetaria do Newseum, o que leva Chris a lembrar-se da pizzaria onde trabalha. E começa a contar aos colegas o que lhe tinha acontecido pouco tempo antes, durante uma pausa do trabalho. Estava prestes a comer uma fatia de pizza barbecue com frango e bacon, quando uma colega de trabalho lhe gritou: “Não comas isso!” A colega tinha visto um novo documentário no Netflix chamado What the Health, que Chris também se apressou a ir ver mal chegou a casa nesse dia. 

Aprendera que a carne provoca cancro. E que o peixe também provoca cancro.

– “Um ovo faz tão mal como cinco cigarros”, afiança aos colegas.

Ruth, Ayman e Idris ficam aterrorizados. Se mais tarde investigarem o documentário em questão, irão perceber que tem sido amplamente criticado por cientistas, e que muitas das suas incendiárias afirmações já foram desmontadas. Mas, para já, os adolescentes já tinham adquirido um novo conjunto de competências com as quais demonstrar o seu cepticismo. De todos os lados da mesa de almoço surgem perguntas para Chris.

– “Mas verificaste os factos?”
– “Qual é a fonte deles?”
– “Pesquisaste as pessoas que aparecem no documentário?”
– “Onde estão as provas?”

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Chris não parece incomodado.

– “É tudo verdade”, responde, enquanto dá mais uma dentada no seu hambúrguer.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post. Tradução de António Domingos. Este artigo encontra publicado no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO

 

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