Breve chave de leitura para os últimos acontecimentos na Catalunha

A vanguarda independentista precisa de uma de duas coisas: ou ganhar a maioria ou, no mínimo, assegurar a neutralidade da grande maioria da população.

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É muito fácil equivocar-nos perante os acontecimentos da Catalunha. Antes das comoções, devemos “tentar perceber”. A primeira coisa a ter em conta é que a conduta dos independentistas obedece a uma lógica e tem um fim tão simples quanto difícil: tentar passar de minoria a maioria. Tanto a marcação do referendo de 1 de Outubro (designado por 1-O) como as cenas desta semana no parlament de Barcelona, em que foram aprovadas leis “que violam todas as leis” e em que a oposição foi silenciada, fazem parte desse dispositivo. E pressupõem uma táctica: forçar o confronto de modo a que Madrid responda com uma escalada repressiva.

É esta a chave de leitura do que se passou no parlament: “A lei [do referendo de autodeterminação], lançada a toda a pressa e sem travões, tem um primeiro objectivo: suscitar a resposta mais dura e contundente do Governo central e do Tribunal Constitucional antes da Diada [11 de Setembro]; para que a reacção a essa investida alimente a mobilização independentista”, anota Ignacio Escolar, director do El Diario.

O jornalista catalão Joan Tapia explicou o cenário ideal para os independentistas: 72 deputados encerrados no parlament em sessão permanente, com 30 mil pessoas a defendê-los na praça perante as televisões de todo o mundo. Já citei este cenário num artigo anterior mas vale a pena repeti-lo.

Números e votos

A vanguarda independentista precisa de uma de duas coisas: ou ganhar a maioria ou, no mínimo, assegurar a neutralidade da grande maioria da população. A realidade não é brilhante. O último inquérito do Centro de Estudos de Opinião, da Generalitat (governo de Barcelona), indica que entre Março e Julho deste ano, a percentagem de apoio à independência baixou de 44,3% para 41,1%. Uma outra sondagem publicada em Julho por La Vanguardia, sobre a identidade nacional, indicava que 43% dos inquiridos se declaram “tão catalães como espanhóis”; 24,4 são “mais catalães do que espanhóis”; 18,1 “unicamente catalães”; e 10,2  declaram-se “apenas espanhóis ou mais espanhóis que catalães”. É um puzzle difícil de gerir.

Quando uma vanguarda decide impor a sua agenda nacionalista tem de forçar a realidade. O chamado “processo” passou já por várias estações. Em Janeiro de 2013, o parlament aprovou uma declaração segundo a qual a soberania reside no povo catalão. A manifestação da Diada de 11 de Setembro de 2013 foi majestosa e marcou um salto na mobilização independentista. O govern de Barcelona, então dirigido por Artur Mas, convocou depois um “referendo” não vinculativo sobre a independência. Realizado em Novembro de 2014, teve a participação de 2,35 milhões de pessoas, pouco mais de 33% do censo. Cerca de 1,8 milhões votaram pela independência.

Era pouco. Na sequência, Mas provoca eleições antecipadas “plebiscitárias”: se a coligação independentista Juntos pelo Sim obtivesse a maioria absoluta (72 mandatos em 135 deputados) o govern e o parlament declarava-se aptos a desencadear a secessão. Realizadas a 27 de Setembro de 2015, a eleições foram um desaire para Mas. O Juntos pelo Sim apenas obteve 68 lugares. Mais incómodo: neste “plebiscito” os independentistas somaram 47,7% e os não independentistas 50,6.

É este mesmo parlament que inicia a fuga para a frente. Para formar uma maioria, o Juntos pelo Sim fez um acordo com a Candidatura de Unidade Popular (CUP), um pequeno partido com 10 deputados e pouco mais de 300 mil eleitores, que depressa assumirá a liderança do “processo”.

A CUP é uma reemergência do antigo e trágico anarquismo catalão. Anticapitalista radical e funcionando em assembleia, defende uma ruptura unilateral com o “reino de Espanha”, com a UE, a NATO e o FMI. Propõe uma estratégia de confronto e de desobediência perante o Estado. O que é notável é que os partidos tradicionais do Juntos pelo Sim depressa ficaram reféns da CUP. Foram os “cuperos” que forçaram a substituição de Mas por Carles Puigdemont na presidência da Generalitat e que, depois, passaram a ditar o ritmo.

Tanto Puigdemont como Oriol Junqueras, líder da Esquerda Republicana da Catalunha, terão pretendido avançar mais lenta ou prudentemente. Terão querido, por exemplo, adiar a “lei da transitoriedade” para depois de 1 de Outubro, isto é, conhecido o desfecho do referendo. A CUP não o permitiu. O problema é que foram tão longe que lhes é difícil travar sem descarrilamento. E não querem submeter-se a novas eleições.

Por seu lado, a CUP prepara-se para endurecer a luta na rua: criar “as condições necessárias” para forçar o uso da força e a produção de “mártires”. Avisa ainda que se oporá radicalmente a qualquer hipótese de “diluir a proposta de referendo num processo negocial com o Estado, que significaria necessariamente a renúncia ao direito de autodeterminação”.

O 1 de Outubro

Rajoy garante que o referendo não terá lugar. Até agora recorreu apenas a medidas judiciais. O recurso ao artigo 155 da Constituição, que prevê a suspensão dos órgãos autonómicos, ficaria guardado para o caso limite de proclamação da independência. A Fiscalía Superior de Catalunya (procuradoria) ordenou às forças de segurança, incluindo Mossos d’Esquadra, que impeçam a celebração do 1-O. “A inflamação política e mediática é fenomenal”, escreve o La Vanguardia. O resto é uma incógnita.

Terá lugar o referendo? Ontem, 640 municípios garantiam promover a votação. Faltava a resposta de 290. Grandes municípios da periferia de Barcelona, geridos pelo PSOE, deverão negar-se a colaborar. A presidente de Barcelona, Ada Colau, mantinha-se em silêncio, depois de pedir um parecer aos seus serviços jurídicos: estes desaconselharam a colaboração no 1-O. A manifestação da Diada de segunda-feira será explosiva.

Com ou sem referendo, a independência permanece no plano do sonho. A grande maioria dos catalães não acredita nela. No entanto, a própria derrota dos independentistas será explorada no registo de uma cultura de vitimização. Argumenta o escritor catalão Antoni Puigverd: “Ainda que fosse muito clara a vitória de Rajoy e do statu quo espanhol seria uma vitória de Pirro, do mesmo modo que a derrota do independentismo seria épica e auguraria um novo começo.”

Uma solução negocial continua longínqua porque Madrid e Barcelona não dispõem neste momento de um terreno comum para chegar a um acordo. Portanto, cresce a tensão.

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