O simpático ruído de uma Justiça silenciosa

Será que os donos de um bar/discoteca são responsáveis pelo facto de os seus clientes, até às seis ou sete da manhã, impedirem os vizinhos de descansar e de dormir?

Será que os donos de um bar/discoteca são responsáveis pelo facto de os seus clientes, até às seis ou sete da manhã, impedirem os vizinhos de descansar e de dormir, ao fazerem-se transportar, em veículos automóveis, cujo movimento de chegada e partida produz ruídos permanentes de motores, incluindo buzinas e acelerações, movimentos esses geralmente acompanhados de vozes em tom muito alto, risos, gargalhadas e, até, gritos?

Diga-se ainda que os clientes do estabelecimento, por vezes, praticavam atos de vandalismo, como seja o partir de garrafas e permaneciam no exterior e para lá do período de funcionamento, conversando em voz alta, berrando e gritando.

O problema colocou-se ao Supremo Tribunal de Justiça num processo movido por um casal, de avançada idade e pouca saúde, morador num prédio vizinho, contra os proprietários do bar/discoteca “Go-Go” em que pediam que este estabelecimento fechasse a partir da dez da noite e lhes fosse atribuída uma indemnização pelos danos morais sofridos no montante de € 12.500.

No julgamento da primeira instância, o juiz dividiu o mal pelas aldeias: mandou fechar o estabelecimento às dez horas da noite, excepto aos sábados que poderia ficar a funcionar até à meia-noite e no mês de agosto em que, para além do funcionamento normal poder ir até à meia-noite, aos sábados podia ficar aberto até às quatro da manhã. Além disso, determinou o pagamento de uma indemnização pelos danos morais sofridos pelo casal no valor de € 8.000.

Mas nem o casal perturbado no seu descanso, nem os proprietários perturbados na exploração económica do seu estabelecimento gostaram da sentença e ambos recorreram para o Tribunal da Relação. E este, foi radical: os verdadeiros incómodos causados ao casal, segundo tinha ficado provado em tribunal, não provinham da música e do barulho do bar/discoteca mas sim do ruído produzido pelos clientes fora do estabelecimento, nomeadamente pelo trabalhar dos motores dos carros e motos, verificando-se, sistematicamente, arranques fortes com a produção de ruídos provocados pelo patinar das rodas motrizes e por um barulho mais intenso dos motores. 

E a Relação não teve dúvidas: estes barulhos não eram imputáveis aos proprietários do bar/discoteca “Go-Go”, mas resultavam de comportamentos ilícitos e culposos de terceiros praticados fora do bar/discoteca, em locais públicos sobre os quais os proprietários do estabelecimento “não têm nem podem ter qualquer domínio ou influência”. E, assim, a Relação absolveu os donos do bar/discoteca do pedido de indemnização, mantendo o funcionamento do estabelecimento até de madrugada e sugerindo ao idoso casal a ida à polícia para se queixar dos transeuntes barulhentos que os incomodavam.

Recorreu o perturbado casal para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Para o STJ, em primeiro lugar, a Relação errara ao afirmar que os incómodos provinham só dos ruídos fora do estabelecimento; na verdade, resultara provado que também o som, resultante do próprio funcionamento da discoteca situada em zona habitacional, muitas vezes até às sete horas da manhã, atravessava as paredes do prédio e até no quarto do casal era audível a música.

Tal facto, por si só, gerava responsabilidade por parte dos proprietários do bar/discoteca pelos incómodos causados. Mas, para além disso, acrescentou, o Supremo, embora não fosse possível responsabilizá-los pelos comportamentos de manifesta incivilidade  dos clientes, ocorridos no exterior da mesma e após o respectivo encerramento, quando se procurava compatibilizar os interesses contraditórios em presença não se poderia naturalmente deixar de se ponderar adequadamente este impacto ambiental negativo, consequência do tipo de actividade exercida.

E, assim, no passado dia 29 de Junho de 2017, os juízes conselheiros Lopes do Rego, Távora Victor e António Piçarra não aceitaram que a Justiça se alheasse das consequências do funcionamento do bar/discoteca, apesar de ocorrerem fora do mesmo, e determinaram que o estabelecimento passasse a fechar às dez da noite e voltaram a condenar os proprietários do bar/discoteca “Go-Go” a pagarem os € 8.000 de indemnização ao casal.

Passados seis anos desde o início da sua batalha, espera-se que o idoso casal possa celebrar descansadamente esta vitória. 

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