O eurodemissionismo é uma desgraça nacional

Mais do que europeísta ou eurocética, a nossa elite político-comentadeira é, simplesmente, eurodemissionista.

Na crónica de segunda mencionei que foram sobre a Europa a primeira, segunda, terceira e demais perguntas durante a primeira hora do debate entre Merkel e Schulz para as eleições alemãs. A reação de alguns leitores foi do género: “Naturalmente, se os alemães mandam na Europa são eles que a devem discutir.”

Mas houve outra coisa curiosa nas respostas de Merkel e Schulz às perguntas sobre a Europa: Merkel disse que não apresentaria uma proposta na UE antes de ter a certeza de ter uma maioria de países com ela, Schulz disse que apresentaria essa proposta mesmo que a Alemanha pudesse ser derrotada em votação final. Ou seja, ninguém optou pela resposta típica nos debates de outros países, nos raros casos em que a Europa é tema: “Chegamos lá, batemos o pé, e a Europa vai ter de entender que a posição alemã é para valer.”

Dir-me-ão mais uma vez que quem manda não precisa de levantar a voz. Permitam-me levantar uma dúvida: e se a Alemanha for determinante na UE não só por ser rica e grande mas porque os alemães dão importância à UE, porque a debatem e procuram entender? Ao passo que todos os outros discutem o hipotético federalismo futuro da UE (para o rejeitar ou para o defender), os alemães conhecem de ginjeira as complicações do federalismo atual e gerem-nas a seu favor no muito em que a UE já é semelhante a uma federação. Não há ministério alemão, região alemã ou até grande cidade alemã que não esteja bem representada em Bruxelas; funcionários públicos alemães visitam eurodeputados de todos os países para se informarem até sobre relatórios que não são de interesse direto alemão; jornais e canais de TV e rádio enviam correspondentes que conhecem tão bem o processo legislativo na UE como qualquer eurocrata. Nenhum outro país está sequer perto de fazer este trabalho de casa. Talvez os países que acham que “não mandam” devessem começar a perceber os benefícios que poderiam tirar de fazer a sua parte.

Por seu lado, a França tentou ontem ocupar o tempo perdido, e o centro do debate europeu. Emmanuel Macron foi a Atenas e fez um discurso no qual não poupou os falhanços da UE na crise do euro, e “o medo do povo” que os líderes dos governos têm revelado desde os referendos perdidos de 2005. Justificou as suas palavras com uma frase: “Os que amam a Europa devem criticar a Europa” — ou seja, quem quer construir o projeto europeu não deve ceder o espaço da crítica à UE àqueles que desejam destruir o projeto europeu.

Macron apresentou em Atenas as propostas da França para o futuro da UE. Alguns exemplos: realização de convenções democráticas em todos os países europeus durante o primeiro semestre de 2018; criação de listas pan-europeias para as eleições ao Parlamento Europeu (a partir dos 73 lugares que serão deixados vagos pelos eurodeputados britânicos); reforço da zona euro com um orçamento e um ministro das Finanças próprio. São propostas insuficientes (por exemplo, não basta ter listas pan-europeias nas eleições para o PE; há que dar aos europeus a possibilidade de escolherem um programa e, indiretamente, um presidente para a Comissão). Mas são propostas para levar a sério.

Ora, eu duvido muito que a elite política e comentadeira portuguesa queira levar estas propostas a sério. Uns zombarão da premissa (“qual futuro da UE?”), outros do mensageiro (“mas Macron é impopular...”), outros do auditório (“ninguém quer saber da Europa”...). Qualquer dessas reações esconde apenas uma coisa: a nossa elite político-comentadeira não está interessada em fazer o seu trabalho de casa. Mais do que europeísta ou eurocética, essa elite é, simplesmente, eurodemissionista. E isso é uma calamidade para o nosso país, que não deveria estar condenado a aceitar factos consumados e correr atrás do prejuízo.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

 

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