Denúncia de “escravatura” e “medo” nos barcos do Douro sai à rua

Medo, precariedade, escravatura laboral. O que se esconde por detrás dos negócios de milhões dos barcos do Douro? Plataforma Laboral e Popular organiza uma manifestação este sábado nos cais de Gaia e Porto

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O turismo fluvial chegou ao rio Douro nos anos 90 Fernando Veludo/ nFactos

Salários baixos. Contratos maioritariamente temporários, quase sempre de três ou de seis meses. Sazonalidade. Jornadas laborais de 60 horas semanais. Contínuas. Folgas em plano b. Dormidas a bordo em espaços exíguos, sem privacidade. Refeições feitas de restos. O cenário é traçado pela Plataforma Laboral e Popular (PLP) — e corroborado por vários trabalhadores e ex-trabalhadores dos barcos turísticos do Douro, ainda que sob anonimato. Fala mais alto o medo de represálias e das portas do turismo fechadas para sempre. Este sábado, nos cais de Gaia (10h) e do Porto (15h), a plataforma criada em 2016 manifesta-se e tenta uma “organização dos trabalhadores” para combater “a vergonha da precariedade”. Afinal, o que esconde o glamoroso negócio de milhões dos barcos do Douro?

O turismo fluvial chegou ao rio nos anos 90 — e em quase três décadas não há registo de manifestações com impacto ou greves entre os trabalhadores. Sinal de paz a bordo? Não, responde Gonçalo Gomes, porta-voz da PLP e ex-trabalhador de três empresas de passeios fluviais: consequência de “um clima de medo” instalado. Por causa dele, a plataforma “não conta com muita adesão” na manifestação deste sábado, uma primeira tentativa de fazer sair o tema da sombra. Mas acredita que, aos poucos, mais gente se juntará. “O meu caso é paradigmático. Queriam-me fora do rio e a verdade é que conseguiram. Mas calar-me não”.

Há várias operadoras a actuar nas águas durienses. Além da líder Douro Azul, do empresário Mário Ferreira, há outras como a Tomaz Douro, a Douro Acima, a Manos do Douro, a Rota do Douro, a Três Séculos, a Croisi Europe, a Viking Cruise, a Barcadouro, a Feeldouro. Neste ano devem alcançar um milhão de passageiros, estima a Administração dos Portos de Douro e Leixões (APDL), que revela que são 61 os operadores turísticos no rio, com 143 embarcações, 20 delas navios-hotel. “Todos exploradores”, acusa Gonçalo Gomes. Trabalhadores serão à volta de 500, estima a PLP. Marinheiros, maquinistas, mestres, cozinheiros, ajudantes de cozinha, copeiros, empregados de mesa e bar, camaroteiros, auxiliares administrativos, vendedores de cruzeiros, assistentes de bordo. “Quase todos precários”.

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Gonçalo Gomes trabalhou durante nove anos em três empresas de barcos do Douro Adriano Miranda

Já esta sexta-feira, o P3 contactou as empresas Tomaz do Douro e Douro Azul, duas das mais representativas nas travessias do Douro, mas os responsáveis não estavam disponíveis no momento, estando o P3 à espera de respostas a questões colocadas por e-mail. Esta manhã, o empresário Mário Ferreira reagiu na sua página pessoal do Facebook, dizendo que o noticiado são “práticas não existentes” e acusando o porta-voz da PLP de “ameaças e calúnias” a vários operadores turísticos do Douro. 

Por estes dias, a PLP — já com um “número significativo de simpatizantes e militantes” e presença no Porto e em Lisboa — andou pelos cais do Porto e Gaia a distribuir panfletos, a tentar criar um burburinho. A lista de reivindicações é longa. “Acabar com a precariedade laboral, substituindo os contratos de três e seis meses por vínculos efectivos, pôr fim aos ordenados miseráveis de salários mínimos e exigir que nenhum trabalhador receba menos do que 750 euros mensais, terminar as jornadas laborais de 60 horas sem direito a folgas.”

Este combate “deve ser encarado do ponto de vista da luta de classes”, diz Gonçalo Gomes, apontando o dedo a PCP e Bloco, que “dizem ser de esquerda mas não são revolucionários”. A PLP, promete, irá “até ao fim”: “Se todo o legalismo não funcionar podemos até passar à clandestinidade.” O discurso mais extremado carrega, no caso de Gonçalo Gomes, nove anos de “exploração” no rio. Passou por três empresas diferentes, mas a diferença entre elas não era grande. “Estive sempre precário. Vi coisas que julguei impossíveis. O Douro é ouro para estas empresas, mas não para quem trabalha nelas.”

Os bons salários e óptimas condições de trabalho nunca passaram de promessas. Os contratos foram quase todos de três ou seis meses. Quando chegava o período em que teria obrigatoriamente de passar a efectivo era mandado para casa. Tempos depois chamavam-no de novo.

A bordo, as jornadas de Gonçalo Gomes eram duras. Nos barcos por onde passou, os trabalhadores entravam ao serviço para fazer a preparação do pequeno-almoço e continuavam até depois do jantar. Faziam pequenas pausas, às vezes. A maioria das empresas não fazia registos de horários. “Agora já fazem, mas é tudo forjado”. Pagamento de feriados e fins-de-semana "nunca foram feitos". As gorjetas eram “divididas de forma injusta”. As dormidas improvisadas em “beliches colocados em espaços minúsculos, sem qualquer privacidade”, denuncia: “Num dos barcos onde trabalhei nem sequer se conseguia estar de pé na zona onde se dormia.” As refeições eram feitas com restos dos buffets dos clientes.

“A escravatura laboral é clara e aberta.” E, acusa a PLP, ninguém faz nada por isso. Dedo apontados às estruturas sindicais: “Os sindicatos afectos à UGT e à CGTP fornecem as respostas do costume aos problemas de sempre”, lamentam num dos panfletos que têm andado a distribuir. Gonçalo Gomes não é de meias palavras: “Não tenho qualquer dúvida de que há conluios com o patronato.”

A estas embarcações, explicou ao P3 Francisco Figueiredo, da Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal (FESAHT), pertencente à CGTP, “aplica-se o Contrato Colectivo de Trabalho da hotelaria e alojamento”. Ou, pelo menos, assim deveria acontecer: “Muitas empresas não estão a aplicar, incluindo a Douro Azul que assinou um Acordo Colectivo de Trabalho com outras organizações”. Por isso, justifica, “tem disso difícil organizar estes trabalhadores”. Diagnóstico anotado: “Há muita precariedade, quase 100%.”

Era a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores do Mar (FESMAR), afecta à UGT, quem estava nos barcos por onde Gonçalo Gomes passou. A sindicalização, conta, é até incentivada. Mas não pelos melhores motivos. “Estão alinhados com os patrões e a prova disso foi o que se passou em 2016”.

Foi o ano da primeira luta laboral no Douro. Ou tentativa dela. Gonçalo Gomes estava então na Tomaz Douro e, entre os 24 trabalhadores, nove quebraram o silêncio e o medo. Organizaram-se. “Escrevemos um manifesto reivindicativo e pedimos à FESMAR para convocar uma greve.” No dia seguinte, conta, “os responsáveis declararam férias sem, deixar o assunto entregue a ninguém”. Semanas depois, acabaram por reunir-se com um representante sindical no Porto. Não estiveram na mesma sala mais do que 15 minutos. “Começou por nos dizer que só iam representar quem descontasse 1% do salário, quando há a possibilidade de descontar 0,75. Uma discriminação.”

Houve uma ruptura com o sindicato. Gonçalo Gomes pediu para se desvincular. Mas o máximo que conseguiu foi passar da contribuição de 1% do salário para 0,75. “Eles não dizem que as pessoas são sindicalizadas, dizem que estão a descontar para um acordo de empresas executado por eles e pelo patronato.” O P3 tentou ouvir o sindicato afecto à UGT, mas não obteve resposta em tempo útil.

Nos quase dez anos no Douro, o portuense viu passar pelos barcos as finanças, a segurança social, a Autoridade para as Condições de Trabalho. “De todas as vezes soube antecipadamente que eles iam visitar o barco”, lamenta, descrente no sistema. “Se era a ASAE deitava-se a carne borda fora, se era a ACT havia que fazer outras diligências.”

Enamorado do Douro, mas expulso dele, Gonçalo não esconde a mágoa. “Ninguém quer saber dos precários do Douro, o turismo dá jeito a muita gente”, regista como quem faz um diagnóstico. Mas há um fio solto — talvez capaz de desencadear um “boicote” ao turismo fluvial — que a PLP procura puxar: “Estas empresas ganham milhões todos os anos, não há qualquer justificação para manterem os trabalhadores precários. Acredito que se os turistas soubessem o que se passa a bordo dos barcos onde passeiam não seriam cúmplices disto.”

Notícia actualizada às 13h02

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