Estado “salarial” versus Estado social

Digam o Governo e o PS o que disserem, gritem o que gritarem, os dados da execução orçamental não mentem.

1. O PS, o Bloco de Esquerda, o PCP e o Governo Costa arvoraram-se sempre nos guardiães, zelosos e exclusivos, do Estado Social. Fizeram-no na oposição durante os anos da troika e na campanha eleitoral de 2015 e vêm a fazê-lo, sem concessões, nestes anos em que tomaram as rédeas do poder. Há, todavia, uma contradição profunda entre a retórica do Governo e dos partidos que o apoiam e a sua prática política. Contra todo esse seu discurso — que, em rigor, é já do domínio da propaganda —, o Governo tem golpeado sistematicamente dimensões fundamentais do Estado social. Mais, tem atingido até dimensões essenciais do simples funcionamento do Estado nas suas funções soberanas (que têm também e concomitantemente uma enorme repercussão social).

A geringonça estabeleceu como prioridade das prioridades a política de rendimentos através da chamada “reposição” ou “devolução” de rendimentos. E esta é, sem dúvida uma vertente cardial do chamado Estado social. Mas é somente uma e apenas uma. Quando, mercê da necessidade de cumprir os critérios de Bruxelas e de manter a trajectória de credibilidade orçamental do país, o Governo actua no sentido de respeitar as metas do défice, evidentemente teve e tem de compensar aquela expansão dos rendimentos com cortes bastos nas políticas sociais e nas despesas de mero funcionamento.

2. É bem verdade que os anos da crise, logo em 2010 e depois de 2011-2014, foram anos de grandes sacrifícios. Ao invés do que o Governo e a esquerda parecem querer apontar, os sacrifícios não afectaram só os pensionistas, outros titulares de prestações sociais e os funcionários públicos. Atingiram também os trabalhadores do sector privado, que viram, por várias vias, comprimida a sua retribuição ou perderam mesmo o emprego. É consensual que o fim do programa de assistência e o início da retoma económica exigiam, em nome da mais elementar justiça, mas também do princípio do Estado social, uma reposição progressiva dos rendimentos que haviam sido temporariamente suprimidos. Para os privados, essa reposição será sempre e inevitavelmente gradual, automaticamente ajustada à recuperação do emprego e ao ritmo do crescimento.

O mesmo se esperaria para a função pública, para os pensionistas e para outros titulares de prestações sociais. Mas não foi isso que aconteceu. O Governo do PS e a esquerda radical, independentemente da consistência e da dimensão do crescimento, optaram pela reposição praticamente integral feita de uma só vez e de um só fôlego. E, com isso, puseram uma pressão brutal no equilíbrio orçamental. Com efeito, e com o crescimento tímido de 2016, o peso da despesa com a reposição integral teve de ser compensado com cortes adicionais — em muitos casos, eufemisticamente disfarçados de “cativações permanentes” — nas mais variadas rubricas da despesa social e não só.

Se a devolução dos rendimentos fosse feita gradualmente, ao longo da legislatura e à medida que o crescimento da economia melhorasse a receita fiscal, não haveria necessidade de afectar o núcleo duro das áreas sociais. E esse teria sido um caminho que não atingiria de modo relevante o desempenho do crescimento, como se prova pela circunstância de este (felizmente) não estar a ser induzido pela procura interna, mas antes pelas exportações e pelo investimento privado. 

Digam o Governo e o PS o que disserem, gritem o que gritarem, insultem o que e quem insultarem, os dados da execução orçamental não mentem. E, de resto, nem de outro modo poderia ser. Não se pode, num só ano, aumentar tão significativamente a despesa em matéria de pensões e retribuições da função pública e, ainda assim, cumprir as metas europeias do défice, sem fazer cortes drásticos em várias rubricas orçamentais. Eis algo que é evidente e elementar, apesar de não ser transparente e estar envolto numa cortina de fumo lançada pela propaganda do Governo e dos seus sustentáculos.

3. O PS e a esquerda extrema fizeram uma escolha: para poderem repor imediatamente a totalidade dos rendimentos não hesitaram em afectar seriamente áreas nucleares do funcionamento do Estado e, em particular, do chamado Estado social. A esquerda — que, a toda a hora, enche a boca com o Estado social — preferiu um Estado “salarial” ao Estado social. Na verdade, ao ter de fazer escolhas, preferiu uma aceleração na reposição dos rendimentos que dependem do Estado à garantia de que o núcleo essencial de políticas públicas não era afectado.

Basta ver o recentemente divulgado desempenho do Serviço Nacional de Saúde para perceber o resultado desta opção. Visite-se uma esquadra de polícia e veja-se como foram votados ao abandono os mais básicos instrumentos de trabalho, do carro à fotocopiadora. O que tem paralelo nas escolas e nos tribunais. Ainda recentemente, um presidente de um tribunal me confidenciava que não lhe resta outra solução senão a do tribunal fugir dos credores.

Neste funesto Verão, seja na área da segurança de pessoas e bens e da protecção civil, seja na área da defesa, o Estado claudicou. E claudicou de uma forma de que não há registo nem memória. Não intercederá uma relação entre este desinvestimento do Estado nas suas estruturas de funcionamento mais básico e a ocorrência dessas falhas?

4. O que o PS e a esquerda radical não percebem é que, por necessários e justos que sejam, mais alguns euros no bolso não permitem a cada cidadão ou cada família aceder aos bens públicos de que foram privados em razão desta escolha. Esta crítica, ao contrário do que diz a reacção histérica e histriónica do PS e do primeiro-ministro, é construtiva. E é construtiva porque mostra que havia outro caminho, que havia uma alternativa: mais gradualismo na reposição e a garantia de que não se afectava a essência do funcionamento dos serviços públicos.

SIM e NÃO

SIM. Francisco Pinto Balsemão, 80 anos. Liberdade como jornalista, coragem como político, cosmopolitismo como homem. Devemos-lhe grandes avanços e sementes de modernidade. Visionário, continua a tratar o futuro por tu.

SIM. Luís Valente de Oliveira, 80 anos. Inteligência, cultura, humor, “saber-fazer” e discrição perfazem o perfil de um académico, executivo e governante exemplar. Encarna, como nenhum outro, a ideia de serviço público.

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