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É urgente encontrar um sofá onde se deitar e aí lhe sirvam um chá com braços, um sofá que abrace além das chávenas e das horas. Há pouco tempo. Ele olha as mãos e confirma que ainda as tem

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Filipa Godinho

Dizem pelas ruas que é urgente.

É urgente entrelaçar os dedos nos cabelos longos de uma mulher antes que todas as mulheres do mundo desapareçam. É urgente encontrar um sofá onde se deitar e aí lhe sirvam um chá com braços, um sofá que abrace além das chávenas e das horas. Há pouco tempo. Ele olha as mãos e confirma que ainda as tem. Atravessa o corredor, vai ao espelho e confirma o rosto — ainda o tem. A cicatriz que o racha a meio veste rosa. Abre-lhe a testa dividindo o mapa em dois, 155 quilómetros em Berlim, contorna o nariz como se desse a volta ao umbigo num pós-parto severo de si mesmo, e desce-lhe o rosto sobre o México, dividindo o mundo quase inteiro, sem lamentações, até à garganta. Metade dele é passado, metade dele é um outro, do outro lado do muro lamentando-se, lamentando-se.

Com um pano húmido limpa a tinta sobre o rosto. Esfrega a toalha pelo pescoço e recupera-se. É ainda jovem, pensa. Tem a pele lisa e branca como um papel de aguarela onde já pintou dois olhos, uma boca, uma mancha de cabelo e barba agora cinzentos. A urgência. Dizem pelas ruas e ele sabe que é urgente riscar mais, ultimar o rosto para que amadureça, terminar os dedos das mãos e desenhar uma mulher a seu lado, presa pelas falanges em todas as fotos que se tirem para a prosperidade.

Atira-se para a urgência do tempo decrescente. Urge pelo corredor atravessando o ar parado entre as portas dos outros. Atrás da madeira sabe-os fechados como naturezas mortas espatuladas em camadas: chão, cama, corpo, tecto, céu, silêncio. Naturezas inquietas mas caladas. Imobiliza-se nas pernas e dentro do peito cala-se e escuta. O corredor é longo, cheio de portas, cada uma guardando uma boca, um grito em potência, uma revolução. Subitamente ocorre-lhe a imagem de uma enorme orquestra de homens e mulheres obedientes às mãos subidas do maestro - em silêncio. Todas as notas suspensas em todos os quartos, 110, 220, 504. Ele escuta. Sente-se dentro de um ensurdecimento pós-bomba, baço, denso, cego. Ergue lentamente as suas mãos trémulas bem alto e fecha os olhos. Ouve o silêncio aumentar e subir com elas, sente-o pesar-lhe nas mãos como um corpo deitado. Ergue-o. Segura as ancas, os ombros desse corpo feito mulher. Bastaria um grito para quebrar todos os muros e desencadear o arranhar da orquestra de cordas em gargantas. Bastaria abrir mão, deixá-la cair, deixar sair o grito ou o sonho. Ou a lucidez. O sangue escorre por dentro dos braços e o silêncio entrega-se a uma gravidade cada vez mais pesada. Lentamente, com o carinho de um amante, ele baixa os braços, baixa os joelhos, segura o corpo calado dessa mulher-silêncio como uma pietá renascentista. Encosta-se à parede do corredor, permite-se escorrer até ao fundo com ela. Rende-se ao fim das balas e da quimio, ao fim da guerra, da aurora, da rua afinal sem urgência alguma. Segurando-a pelo pescoço ele beija-a. Beija o silêncio do corredor inteiro. Sente-a com as mãos, afaga o rosto no seu pescoço, na sua boca e apertando-a contra si beija-lhe o ar, beija cada uma das suas ausências. Com os dedos sente os fios longos e encaracolados dos cabelos. Enrola-se neles, dedo a dedo, e de olhos fechados ouve crescer dentro de si uma melodia, uma música que quer sair pelas mãos. Tocando os cabelos daquela mulher abraçada ele começa a tocar piano, com a destreza da já tão esgotada juventude, levanta e pousa os dedos em notas exímias numa melodia audível apenas por si mesmo. A beleza do momento leva-lhe a doçura até ao rosto. Tudo o resto é matéria inexistente. O som do piano cresce como fumo pelo corredor, leve, delicado, entra pelas frinchas das portas e incendeia a casa inteira sem se notar de onde vem. Ele sorri. Tudo arde à volta. Ele pousa abraçado ao corpo da mulher-silêncio e dança sobre ela a ponta dos dedos numa celebração melancólica de quem sente. Sentir. Sentir. Abraça-a cada vez com mais força. Toca com cada vez mais intensidade e não ouve mais nada. Não ouve os passos de quem vem, de quem o leva, de quem o deita entre camadas horizontais organizadas do mais pesado ao mais leve até ao teto. Continua a tocar. Sente o chá nos lábios como beijos quentes. Toca. O cobertor como um abraço. Toca. Os dedos fora de tudo. Sente.

A vida a vibrar por dentro e ele a tocar, a tocar, a tocar.

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