Kim Newman: “O cinema de terror é uma vocação sagrada”

Um dos mais importantes divulgadores do cinema de terror, o crítico e escritor britânico é este ano jurado do MOTELX 2017, que começa esta terça-feira em Lisboa e vai até domingo. Conversa sobre um cinema que é suposto ser ofensivo e marginal.

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Kim Newman fotografado em Londres em 2014 Will Ireland/SFX Magazine via Getty Images

“Acabei de ver o último filme do Frightfest deste ano, e isso quer dizer que acabei de ver 55 filmes, portanto ainda não mudei a agulha para o próximo festival!” Foi assim, pelo meio de risos, que Kim Newman atendeu o telefonema do PÚBLICO em Londres, uma semana antes do arranque (esta terça-feira, pelas 21h30) do MOTELX – Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. Jornalista, crítico e escritor, Newman (n. 1959) é um dos mais importantes divulgadores do cinema de terror a nível mundial – deve-se-lhe um dos estudos definitivos do género, Nightmare Movies – e faz este ano parte do júri que vai atribuir o Prémio de Melhor Longa-Metragem Europeia no festival lisboeta, para lá de estar à conversa, na tarde de sábado, com o chileno Alejandro Jodorowsky (São Jorge, 17h30).

A presença de Newman entre nós era, assim, irresistível para abordar a questão da constante popularidade de um género que não consegue sacudir a sua dimensão de “marginal”. A conversa teve lugar em pleno “rescaldo” do festival londrino Frightfest, no dia a seguir à morte de Tobe Hooper, o realizador de Massacre no Texas. E foi mesmo por aí que a conversa começou.

Tobe Hooper disse numa entrevista que os filmes de terror sempre foram vistos pela indústria do cinema como algo para manter à distância, mas que na realidade eram o que pagava as contas.
Sim, é verdade! Mas o Hooper seria a primeira pessoa a admitir que ninguém quer fazer um filme de terror respeitável (risos). É uma atitude que vem muito de antes do cinema; acredito que na era vitoriana os editores que publicavam romances góticos e panfletos sensacionalistas também o faziam para pagar as contas, queriam era publicar George Eliot e Jane Austen. Mas o terror é um género populista, ofensivo, e é aí que reside a sua força: é suposto entrar por áreas perigosas, assustadoras.

Mas muitos realizadores que começaram pelo terror são hoje considerados mestres. John Carpenter, George Romero, David Cronenberg...
Sempre foi assim. Não se esqueça de que mesmo Oliver Stone começou por fazer filmes de terror, provavelmente porque eram mais fáceis de financiar, mas Stone nunca teve o mesmo interesse do Carpenter no terror enquanto género. E Carpenter também fez filmes políticos. Eles Vivem! [1988] é um dos filmes mais perspicazes e profundos sobre a cultura e a política americana jamais feitos.

Aí está um bom exemplo de um filme que só foi reconhecido com o tempo.
Os filmes de terror sempre tiveram uma vida longa, muito mais do que muitos filmes ditos mainstream. Existe uma espécie de “redenção” para os filmes de terror que não têm êxito à estreia. Pense por exemplo em Freaks [A Parada dos Monstros, 1932]. É contemporâneo de êxitos mainstream como Drácula e Frankenstein [ambos de 1931], mas o estúdio que o produziu ficou horrorizado e rapidamente o “desautorizou”; com os anos, o filme foi redescoberto, tornou-se um clássico, e hoje é aceite como uma estranha obra-prima.

O cinema de terror é um dos poucos géneros em que os estúdios continuam a investir, para lá dos super-heróis e das sequelas.
Isso é porque os filmes de terror são baratos: não giram à volta de actores de nome, que é o que é mais caro no modelo de produção de Hollywood. Se fizer A Casa na Floresta [Joss Whedon, 2011] com cinco adolescentes, o espectador não sabe a ordem em que eles vão morrer (risos), mas com o Tom Cruise, a Jennifer Lawrence e outros actores de nome, só pelo genérico já se percebe quem vai sobreviver. OK, às vezes há um Hitchcock que faz um Psico e baralha outra vez as cartas... Mas lembre-se, por exemplo, do Génio do Mal [Richard Donner, 1976], que tinha o Gregory Peck no papel principal e que era um filme de terror de estúdio, de grande orçamento, sério. Ora eu gosto muito mais do Massacre no Texas, que foi feito sem dinheiro nenhum, porque não me sinto seguro nem confortável a vê-lo; se olho para o Génio do Mal, que é mesmo assim um filme muito deprimente e niilista (risos), o facto de ter aquela patine de Hollywood permite-me achar que é só um filme.

No entanto, muitos dos filmes de terror recentes mais interessantes são filmes sérios.
Sim, coisas como The Witch [Robert Eggers, 2015], O Senhor Babadook [Jennifer Kent, 2013] ou Vai Seguir-te [David Robert Mitchell, 2014]. Mas não tenho certeza de que os puristas do género gostem genuinamente desses filmes. Por outro lado, também é verdade que nos anos 1970 e 1980 os filmes do Romero, do Cronenberg ou do Carpenter eram vistos como mais sérios, e havia ao mesmo tempo muitos filmes de terror mais “convencionais”, e as pessoas não se lembram tanto desses. É sempre assim.

Nos anos 1970 e 1980 houve muitos autores a serem revelados, mas não tanto depois disso.
Sim, os anos 1990 não foram particularmente bons, mas nos últimos 15 anos voltaram a aparecer pessoas com visões muito pessoais, como o James Wan [que lançou as séries Saw, Insidious e The Conjuring]. Tem é havido muitos primeiros filmes, como O Senhor Babadook ou Foge [Jordan Peele, 2017], e não podemos ainda saber se a Jennifer Kent vai continuar a querer fazer filmes de terror ou seguir outros caminhos. Alguns provavelmente vão continuar no género e fazer até pequenos clássicos no futuro... Para mim, o cinema de terror é uma espécie de vocação sagrada (risos), é em si próprio uma realização artística que possibilita fazer muitas coisas muito interessantes.

Não sente às vezes que se fazem filmes de terror a mais?
Quando comecei a interessar-me pelo género, decidi que queria ver todos os filmes de terror jamais feitos. Eram os anos 1970 e nessa altura era um objectivo perfeitamente alcançável. Mas hoje há tantos filmes vindos de tantos sítios que se eu decidisse investigar, por exemplo, os filmes de terror indianos, teria de pôr de parte um ano inteiro só para eles... É verdade que muitas vezes vejo 10 ou 15 filmes que são todos muito parecidos entre si, mas isso também permite identificar tendências, pontos em comum, e isso é por si só interessante. A multiplicidade de possibilidades de acesso que existem hoje garantem que haverá sempre alguma coisa a descobrir.

Por falar nisso, o remake americano do japonês Death Note acabou de se estrear directamente no Netflix.
Aí está um modelo de distribuição sobre o qual ainda não temos um veredicto. Estar no Netflix não é igual a ser visto por todos os assinantes do Netflix. Mas do ponto de vista da produção, não importa quanta gente o vê, porque o investimento já foi recuperado... Ainda está em aberto se o Netflix consegue sustentar um franchise. Se olhar para os grandes êxitos do cinema de terror nos últimos 15 anos, coisas como Saw ou Actividade Paranormal são pequenas produções fora do baralho, feitas por realizadores sem currículo, e que mexeram com o público. Será que se o Saw se tivesse estreado na Netflix hoje teríamos um novo filme da série a estrear-se no final do ano? Não tenho certeza.

Dado que a televisão parece estar a tornar-se importante para o género, com séries como The Walking Dead ou American Horror Story, acha que é aí que está o futuro?
A televisão trata muito bem o terror, embora no geral não corra tantos riscos como podia. Uma série como Black Mirror é mais Twilight Zone do que outra coisa, embora tenha bons momentos de terror. Mas nos anos 1970, quando havia menos canais, fizeram-se para televisão algumas das melhores histórias de fantasmas de sempre. Era simpático se isso voltasse a acontecer.

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