Para além do dever de informar

A capa do PÚBLICO de 27 de Agosto de 2001 marca um dia em que Portugal ficou um pouco mais adulto. Não é coisa pouca. Ao contrário do famoso aforismo, nem só as más notícias são notícia. Aquela foi uma boa notícia.

Fiz as contas e foram 4057. Quatro mil e cinquenta e sete capas do PÚBLICO entre 1 de Setembro de 1998 e 31 de Outubro de 2009. E pediram-me para escolher apenas uma.

Felizmente deram-me também alguns dias para pensar. Há muitas capas do jornal de que me recordo com especial carinho, ora por terem correspondido a momentos marcantes da nossa história recente – a capa do dia 12 de Setembro de 2001, como não podia deixar de ser, com Nova Iorque envolta numa nuvem de pó e fumo; a do dia seguinte à queda da ponte de Entre-os-Rios, com uma foto que nunca esquecerei; a do dia em que Guterres não resistiu a uma derrota eleitoral nas autárquicas; aquela em que se anunciava a ida de Barroso para Bruxelas; algumas da campanha eleitoral de 2008, a que levou Barack Obama à Casa Branca; a do dia a seguir à morte de João Paulo II; aquelas em que se começaram a revelar os lados sombrios de José Sócrates, da história da licenciatura à das casas na Guarda – ora por serem muito poderosas esteticamente – como uma sobre a sida, ou a do dia em que foi revelado o genoma humano.

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Durante os anos em que fui director o modelo de capa mudou duas vezes. O design original era muito poderoso, e imensamente original em 1990, mas no ano 2000 procurámos ir ao encontro de novos hábitos de leitura e, numa altura em que a informação online ainda chegava a muito poucos, dar mais notícias. Em 2007, numa altura em que a informação online começava a rivalizar com o velho papel, fez-se uma mudança ainda mais profunda e mais exigente, e que dessa vez chegou ao logotipo. Podia também ter escolhido as capas desses momentos de viragem, mas seria como estar a olhar para o meu próprio umbigo.

A minha escolha acabou assim por recair numa capa que, na minha perspectiva, mostra como o papel dos órgãos de informação não se esgota no dever de informarem, reportarem, explicarem, enquadrarem e comentarem, tal como não se esgota no dever de serem incómodos para todos os poderes. Também podem, e devem, ser actores sociais capazes de promover uma sociedade mais aberta, uma cidadania mais informada, uma democracia com mais qualidade.

Não falo, naturalmente, de qualquer agenda política, mas de agendas cívicas. Isso pode acontecer em momentos de crise ou de catástrofe, e aí há uma velha tradição de mobilização de solidariedades. Mas também pode ocorrer quando se consegue, por exemplo, romper e contribuir para mudar a velha cultura de secretismo do Estado português.

É por isso que acabei por escolher como a “minha capa” aquela que assinala um desses momentos: a publicação, pela primeira vez em Portugal, das listas com as notas médias conseguidas, escola a escola, nos exames nacionais do 12.º ano. Os hoje famosos “rankings” resultaram de uma luta de anos, liderada pelo PÚBLICO, e no PÚBLICO por mim e pelo António Granado, para conseguir que essa informação, que o Estado todos os anos coligia e organizava, pudesse ser livremente consultada por alunos, pais e professores. Por todos os cidadãos. Foi uma luta de vários anos que quase chegou aos tribunais, mas por fim, nesse 27 de Agosto de há 16 anos, pude assinar um editorial chamado “Um dia histórico”. Isto porque, em nome do “dever de informação e transparência por parte do Estado e da administração pública”, informação importante deixou de ser propriedade da burocracia interna do Ministério da Educação.

Passados todos estes anos gosto de olhar para aquele título simples – “A lista” – e para aquela ilustração simbólica de um cérebro, ilustrando a ideia de que a inteligência colectiva tem mais valor do que a inteligência dos que se têm por iluminados e, por isso, únicos tutores de informação que só ganha em ser partilhada por todos. Como de resto o tempo tem vindo a provar, apesar das muitas tentativas para desqualificar esta partilha de informação e a generalidade dos rankings.

Quero acreditar que aquela capa do PÚBLICO marca um dia em que Portugal ficou um pouco mais adulto. Não é coisa pouca. Ao contrário do famoso aforismo, nem só as más notícias são notícia. Aquela foi uma boa notícia.

José Manuel Fernandes foi director do PÚBLICO de 1 de Setembro de 1998 a 31 de Outubro de 2009

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