John Ashbery (1927-2017): uma cabeça cheia de vozes, sons e imagens

Foi o mais influente poeta norte-americano da segunda metade do século XX, mas também o mais difícil de catalogar. Morreu este domingo aos 90 anos.

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Eamonn McCabe/Getty Images

O poeta norte-americano John Ashbery morreu este domingo, aos 90 anos, na casa de Nova Iorque que partilhava com o seu marido, David Kermani. Desaparece assim aquele que era, muito provavelmente, o mais aclamado e influente poeta norte-americano da segunda metade do século XX. Fascinando uns e irritando outros com a sua poesia na qual nem sempre era fácil reconhecer um tópico ou vislumbrar um sentido, talvez se possa dizer que a poesia de Ashbery tratava do que se passava na sua cabeça quando escrevia poesia.

Não admira que este crónico candidato ao Nobel da Literatura nunca o tenha ganho, já que seria bastante difícil argumentar que a sua obra alguma vez tenha assumido uma direcção idealista, como o fundador do prémio sueco parece ter desejado. A ausência de direcção, ou a constante mudança de agulha, será até das características mais consensuais da escrita de Ashbery, cuja poesia, ele próprio o disse numa entrevista, “tenta reproduzir o modo como o conhecimento e a consciência vêm à mente, isto é, por surtos e solavancos, sem direcção”.

Influenciado pelas artes não-verbais, como a pintura e a música, a sua poesia parece também ter tentado transmitir o tipo de emoção não verbalizável que nos provoca uma pincelada de Jackson Pollock ou uma composição de John Cage (dois artistas que admirava), ou pelo menos reproduzir o que se passava no seu espírito quando respondia a esse impulso. Com uma erudição que tanto abarcava a grande tradição literária, da antiguidade ao modernismo, como a cultura popular contemporânea, e dotado de um assustador talento para criar imagens únicas e sugestivas, a poesia polifónica de Ashbery cruza a alusão erudita com a conversa ouvida no metro, num momento é irónica e divertida, no outro é grave e solene, move-se com a mesma facilidade nos intrincados limites da sextina renascentista ou no mais prosaico verso livre, fascina-nos com imagens fulgurantes, cujo sentido julgamos apreender, para logo nos desorientar com passagens inóspitas e obscuras.  

Mas nem na sua relação algo árdua com o sentido é esta poesia previsível ou estável. O seu grau de abstracção varia muito de livro para livro e de poema para poema, e, com a idade – a passagem subjectiva do tempo é talvez um dos seus tópicos mais indiscutíveis –, vários críticos foram notando a crescente presença de ressonâncias elegíacas.

Alguns dos estudiosos da sua poesia vêem-no como um exemplo de pós-modernismo, outros sublinham a sua dívida aos grandes antecessores modernistas, como T. S. Eliot ou Wallace Stevens, por quem Ashbery nutria uma assumida predilecção. O seu lugar na poesia de língua inglesa está ainda longe de ser um caso arrumado, mas o ensaísta Harold Bloom não hesitou em profetizar: “Ninguém a escrever hoje poemas em língua inglesa é um candidato mais provável do que Ashbery a sobreviver ao severo juízo do tempo."  

Um vaticínio que, no presente, é bastante consensual, mas que só começou a sê-lo quando Ashbery andava pelos 50 anos e era já autor de uma considerável bibliografia. O ponto de viragem foi claramente a publicação, em 1976, de  Self-Portrait in a Convex Mirror, que abre com um extenso poema narrativo em torno da pintura homónima do quinhentista Girolamo Francesco Maria Mazzola, dito Parmigianino.

Pela primeira vez um livro de poemas conseguia a façanha de ganhar simultaneamente os prémios Pulitzer, National Book e National Book Critics Circle. Meditação sobre temas como a representação ou a natureza da criação artística, o volume

 revelava um Ashbery mais inteligível do que era habitual e foi instrumental para a o processo de canonização que faria dele, para usar de novo as palavras de Bloom, o último elo numa “sequência americana que inclui [Walt] Whitman, [Emily] Dickinson, [Wallace] Stevens e Hart Crane”.

Foi justamente esse poema inicial do livro de 1976 que António M. Feijó escolheu para título da sua antologia de poemas de Ashbery: Auto-retrato Num Espelho Convexo e Outros Poemas (Relógio D’Água, 1995). Traduzido e posfaciado por Feijó, é a mais importante edição portuguesa do poeta norte-americano, tendo surgido poucos anos depois da pioneira tradução colectiva editada em 1992 pela Fundação Casa de Mateus com o título Uma Onda e Outros Poemas. Ashbery estivera no ano anterior na Casa de Mateus, em Vila Real, acompanhado dos seus pares Philip Levine e Kenneth Koch, e um grupo de poetas e ensaístas portugueses, que incluía António Franco Alexandre (talvez o poeta português mais aproximável de Ashbery), traduziu-os, por assim dizer, ao vivo, tendo a versão final sido completada por João Barrento com a colaboração de Richard Zenith.  

Divulgador de Raymond Roussel

John Ashbery nasceu em Rochester, no estado de Nova Iorque, em 1927, e era filho de um lavrador e de uma professora de biologia. Passou a infância numa quinta. Tinha 12 anos quando o irmão mais novo, e seu companheiro de brincadeiras, morreu de leucemia. Ainda no liceu, começou a escrever poemas, mas a sua ambição era então a de vir a tornar-se pintor e frequentou durante vários anos aulas de arte no museu de Rochester. A sua carreira de pintor não vingou, mas foi durante anos crítico de arte.

Frequentou as universidades de Harvard – onde conheceu os poetas Kenneth Koch, Frank O’Hara e Robert Creeley –, Nova Iorque e Columbia, e trabalhou como revisor em Nova Iorque na primeira metade dos anos 50, tendo vivido depois cerca de uma década em França, onde conheceu melhor autores que viriam a tornar-se referências importantes da sua obra, e que em muitos casos traduziu, como Lautréamont, Baudelaire ou Rimbaud, e sobretudo Raymond Roussel, de quem foi o grande divulgador nos Estados Unidos. Em 1970 iniciou uma carreira docente como professor de Literatura em vários colégios, que manteria até se reformar.

Como poeta revelou-se em 1953, com Turandot and Other Poems, e o original de Some Trees ganhou em 1956 um prémio universitário para jovens poetas. O júri era o poeta W. H. Auden, que depois confessaria não ter percebido uma palavra do manuscrito que elegera. Seguiu-se The Tennis Court Oath (1962), ainda hoje um dos mais discutidos volumes de Ashbery, e talvez aquele em que levou mais longe a tentativa de uma poesia quase abstracta. Logo após o já referido Self-portrait in a Convex Mirror (1975), publicou outro dos seus livros mais apreciados, Houseboat Days (1977). O longo poema-livro Flow Chart (1992), Hotel Lautréamont (1992), Chinese Whispers (2002) ou Where Shall I Wander (2005) são outros títulos fundamentais na sua extensa bibliografia, encerrada em 2016 com Commotion of the Birds.

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