Frances McDormand tem a bacia de John Wayne

Para o seu papel de mãe vingadora que empurra a justiça com as suas mãos, a actriz diz ter-se inspirado no mítico cowboy. O entusiasmo que está a desencadear Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, de Martin McDonagh, faz com que ela junte à Margo de Fargo esta Mildred Hayes.

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Three Billboards Outside Ebbing, Missouri TWENTIETH CENTURY FOX FILM CORPORATION
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Martin McDonagh EUAN KERR/MINNESOTA PUBLIC RADIO
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Ex-Libris – The New York Public Library ZIPPORAH FILMS
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Frederik Wiseman ERIK MADIGAN HECK

Frances McDormand diz que não se importa, rendeu-se a uma inevitabilidade: na sua pedra tumular vai rezar que foi a Marge Gunderson de Fargo (1996), filme de Joel e Ethan Coen. Mas o entusiasmo que está a desencadear Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, de Martin McDonagh, prenuncia que ela terá de se decidir: terá de levar para a tumba também Mildred Hayes – o entusiasmo dá-lhe até já outro Óscar.

Começamos por agradecer a Frances ela ter libertado o Clint Eastwood que existe nela. Ela diz que foi John Wayne. No filme nao se vê, explica, porque ficaram fora da montagem, mas havia cenas em que imitava o andar de Wayne, o peculiar movimento que se desprendia da sua bacia. Foi num ícone masculino que se inspirou para a personagem de uma mãe, numa pequena cidade americana, que empurra a máquina policial e judicial, através da compra de provocatório espaço publicitário, para que descubra quem violou e matou a filha. Isto vai desencadear episódios sanguinolentos como nos filmes de Tarantino – ou dos irmãos Coen...

Clint ou Wayne, tanto faz. O que interessa é o aparecimento do cowboy na personagem de Frances, algo que o realizador diz que só ela consegue fazer – além do mais, sublinha, é actriz que não cortou com a sua linhagem operária, e ele, Martin McDonagh, dramaturgo, argumentista, realizador (Em Bruges, 2008; Sete Psicopatas, 2012), escreveu a pensar nisso, a pensar nela.

Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (competição) joga por um lado com o vigilantismo, com a vingança; por outro, com a redenção, escrevendo para as personagem um arco como o de John Wayne, que começava como racista n’A Desaparecida (John Ford, 1956). Martin McDonagh escreveu para gente que conhecia, Frances, Woody Harrelson e Sam Rockwell (polícias da cidade), e “o truque foi...”, diz ele, e depois emenda, “não foi truque”... Mas sim, a boca fugiu-lhe para a verdade, é um truque, dominado, apurado, mas é um truque de argumentista, esse, de apresentar as personagens todas como racistas, violentas, e depois, como coreografia desenhada, começar a mostrar delas, lá para metade do filme, um outro lado, suspendendo finalmente tudo na “humanidade” reencontrada. O espectador, sossegado, sai cheio de divertimento e sem culpa.

Os actores são virtuosos, o argumento dá-lhes palavras e situações que eles valorizam, mas o jogo impede que desça sobre as personagens qualquer dimensão trágica, autodestrutiva – como acontece no cinema de Tarantino, por exemplo, de quem o filme se aproveita mas com quem nunca estará à altura de ser comparado. E impede que o divertimento seja a epifania cinematográfica que por aqui se grita. Esta viagem é sempre uma descoberta decidida do exterior pelos desígnios do cineasta-argumentista. Nunca a sentimos como (des)governada por infernais (e humanas) personagens.

Há algo que se perde, também, em Ex-Libris – The New York Public Library, o novo filme de Frederick Wiseman (cineasta pela primeira vez em concurso em Veneza). Nos três últimos filmes, At Berkeley (2013), National Gallery (2014) e In Jackson Heights (2015), há um olhar sobre instituições, respectivamente uma universidade e um museu (silencioso jogo de olhares, este...), e sobre um bairro (Queens, Nova Iorque), que, se disfarçava o afecto, era permeável a ele. Fundamentalmente, colocavam-se em relação os filmes e as instituições – senão com figuras ou personagens, pelo menos com os movimentos e gestos de um grupo, de uma comunidade. A Biblioteca Pública de Nova Iorque, com as suas 92 divisões espalhadas por Manhattan, Bronx e Staten Island, é uma biblioteca pública mas não é apenas, nem fundamentalmente, um espaço de livros. É um espaço de saber e de acesso ao mundo, ali se concretizam a democracia e os seus valores fundamentais. Por isso surpreende esta espécie de desinteresse, se podemos chamar-lhe assim, de Wiseman por uma dinâmica, pelo seu movimento. Ex-Libris – The New York Public Library é dos mais monolíticos dos seus filmes. O mais institucional do cineasta das instituições.

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