Na Tasmânia, a caça à raposa não passou de uma caça aos gambozinos

Durante dez anos, um programa governamental quis eliminar as raposas da Tasmânia. Havia um problema: nunca existiram lá. Os dados estavam mal examinados e cientistas portugueses mostraram que não eram válidos. O programa foi suspenso.

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Raposa-vermelha ou europeia (Vulpes vulpes) Juan Lacruz/Creative commons

Se alguém o mandar caçar gambozinos, é porque está a querer enganá-lo. Como estes animais só existem no nosso imaginário, não vai ter sucesso na caçada. Na Tasmânia, ilha da Austrália, a caça à raposa não foi assim tão diferente. Havia boatos de que tinha sido introduzida na ilha e isso podia colocar em perigo o ecossistema. Então, o Programa de Erradicação da Raposa (FEP, na sigla em inglês), do governo da Tasmânia, vigorou durante dez anos. Gastaram-se cerca de 33 milhões de euros (50 milhões de dólares australianos) e testes genéticos até confirmavam a presença da raposa.

Contudo, uma equipa de cientistas portugueses desmascarou essas “provas”. Um artigo já deste ano na revista Conservation Biology, que inclui autores portugueses, refere que muitas das milhares de observações da “suposta” raposa foram influenciadas por notícias em jornais suscitadas por membros do programa. Resultado: até agora não se encontraram raposas na Tasmânia e o programa acabou. Mas ainda há quem as tente caçar.

Conhecemo-las como matreiras e perspicazes nem que seja nas fábulas. Na realidade, o facto de a raposa-vermelha ou europeia (Vulpes vulpes) ser omnívora faz dela um predador temido por muitos animais e até pelos humanos, pois pode causar muitas perdas em quintas ou explorações avícolas. Está presente, sobretudo, no Hemisfério Norte. Distribui-se desde o Círculo Polar Árctico, América do Norte, Europa (inclusivamente em Portugal) até ao Norte de África, estepes asiáticas, Índia e Japão. E ainda um pouco mais a sul: na Austrália continental.

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O investigador Filipe Pereira DR

“Foram introduzidas por caçadores desportivos europeus a meio do século XIX. Estabeleceram-se depois de serem libertadas em larga escala perto de Melbourne [na Austrália]”, aponta Clive Marks, especialista em raposas da empresa Nocturnal Wildlife Research, na Austrália, e um dos membros do Tasmanian Fox?, grupo de investigação do FEP. A Austrália continental tem hoje milhares de raposas, que são consideradas uma praga. “Uma das mais elevadas densidades mundiais de raposas existe perto do terminal de ferry de Melbourne que vai para a Tasmânia.”

Contudo, ainda acrescenta: “Nunca existiu na Tasmânia uma população de raposas.” Nesta ilha situada 200 quilómetros a sul da Austrália continental, há “supostos” avistamentos de raposas desde o século XIX, como o refere um artigo científico de 2014 na revista Wildlife Society Bulletin, que tem como principal autor Clive Marks, e em que participa o português Filipe Pereira, agora do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) da Universidade do Porto. “Encontrámos 17 relatos associados a raposas, incluindo cinco que reportavam introduções, registadas na Tasmânia entre 1843 e 1972”, lê-se no artigo. Até 1998, nunca houve relatórios ou textos sobre listas de mamíferos que incluíssem a raposa-vermelha como espécie exótica na Tasmânia.

Uma viagem de ferry

“Há um único caso em que há provas que uma raposa veio por ferry [em 1998], de Melbourne, e saiu na ilha”, refere Filipe Pereira. Só que era apenas uma raposa e isso aconteceu fora da sua época de reprodução. “Aquela raposa nunca poderia estabelecer uma população na Tasmânia.” Quando se pede fotografias ou vídeos dessa altura a Clive Marks, responde-nos: “É um mistério. Há afirmações de que existe um filme – mas nunca o vi e não divulgaram as cenas. É possível que isso tenha acontecido mas não foi feita uma análise rigorosa.”

Como nasceu então esta caça à raposa? Tudo começou em 2001, quando funcionários do Serviço Nacional de Parques e Vida Selvagem da Tasmânia (responsável pelas áreas protegidas) divulgaram que tinham sido introduzidas 11 a 19 raposas na ilha. Logo surgiram várias notícias na comunicação social e nasceu um medo de que começasse uma “praga” de raposas. Clive Marks conta-nos que o boato pode ter vindo de alguém que teria ouvido que seriam introduzidas raposas na ilha. Essa pessoa tinha um familiar no serviço de parques e a partir daí a informação espalhou-se.

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Cartoon que satiriza a procura da raposa na Tasmânia Jon Kudelka

A raposa seria uma espécie invasora que poderia matar algumas espécies que existem na ilha, como pequenos roedores, ou podia competir com outras espécies, como o diabo-da-tasmânia. “É uma espécie invasora que ia prejudicar imensas espécies locais e, nalguns casos, até levar à extinção de algumas”, explica Filipe Pereira. “Até percebo que no início tivessem de ter tomado medidas para não correrem o risco de existirem lá raposas.”

Mas quando a polícia da Tasmânia investigou este caso chegou à conclusão de que não existiam provas sobre a introdução de raposas na ilha. “Há um relatório da polícia que refere que aquela introdução não tinha ocorrido”, refere Filipe Pereira. “Até hoje, os detalhes de como tudo isto começou não são bem conhecidos”, salienta ainda Clive Marks.

Mesmo assim, em 2003 começou o Programa de Erradicação da Raposa criado pelo governo da Tasmânia e auxiliado pela Universidade de Camberra (Austrália). Uma das medidas do programa foi colocar iscos com veneno em determinados pontos da ilha, como armadilhas. “O veneno seria mais eficaz a travar mamíferos que não eram locais. As espécies locais estariam adaptadas a este veneno, pois existe em algumas plantas. Mataria as raposas que viveriam lá, mas também podia ser um isco para cães, gatos ou outros mamíferos”, explica Filipe Pereira.

O veneno podia ter sido ainda um perigo para a saúde humana, caso entrasse nas águas e depois na cadeia alimentar. Também não existiam estudos científicos que justificassem que os iscos com veneno eram o melhor método para eliminar a raposa nesta ilha com cerca de 68 mil quilómetros quadrados.

Ao longo dos anos, foram contabilizados cerca de três mil avistamentos de raposas na Tasmânia (nunca confirmados). “Não havia câmaras com sensores que detectassem a raposa”, exemplifica o português. Eram também encontradas carcaças que começavam por ser de raposas e depois passavam a ser de animais de estimação. Ou ainda eram descobertas “supostas” raposas mortas na estrada, mas depois a autópsia concluía que tinham sido atropeladas já depois de mortas. Estas raposas terão sido trazidas da Austrália por caçadores tasmanianos.

PCR à portuguesa

Um dos argumentos mais fortes para manter o programa a funcionar foram os testes genéticos (até porque não existiam outras provas) realizados pelo Instituto de Ecologia Aplicada da Universidade de Camberra. Foram recolhidas mais de dez mil amostras de fezes por toda a ilha. Os cientistas usavam a técnica da reacção em cadeia da polimerase (PCR), para amplificar fragmentos de ADN e obter assim grandes quantidades desta molécula em amostras pequenas. Diziam que os testes eram específicos para raposa, e se existisse ADN da raposa, o teste seria positivo. Ao todo, houve 61 positivos. Até acabou por sair um artigo científico que referia a existência de raposas na ilha, na revista Wildlife Research.

Esse artigo tem agora uma nota de editor a dizer que parte dos dados estão a ser investigados e revistos. Tudo porque uma equipa de cientistas portugueses mostrou que esses testes não eram eficazes. Foi então em 2012 que Filipe Pereira entrou nesta história. Clive Marks achou que algo de estranho se passava e contactou o português depois de ter consultado alguns dos seus trabalhos. “Fezes isoladas de raposa foram detectadas por toda a ilha, mas nunca estavam agrupadas como é comum no continente. As pessoas diziam que observavam raposas a toda a hora – mas não havia provas associadas a essas observações”, explica o australiano. E diz ainda que as pessoas viam as raposas durante o dia, algo que ele não tinha conseguido observar na Austrália continental. “O programa de raposas na Tasmânia começou a inventar histórias de como as raposas eram diferentes na Tasmânia.”

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Cartoon que satiriza a procura da raposa na Tasmânia Jon Kudelka

Nessa altura, Filipe Pereira estava no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), num grupo coordenado por António Amorim e trabalhava também com Joana Gonçalves. Para o estudo, recolheram-se várias amostras de fezes de várias espécies que existem na Tasmânia e testou-se o método da equipa australiana para verificar se era mesmo específico para as raposas. “Vimos que não era eficaz e não era específico para a raposa. Se existisse um dejecto de outra espécie, o método poderia dizer que era de raposa quando não era, é o chamado ‘falso positivo’”, explica Filipe Pereira. Ou seja, o ADN nas fezes tinha material de coelho, de lebre, de porco ou do diabo-da-tasmânia (e não de raposa). Foram publicados cinco artigos científicos com estes resultados (o primeiro em 2014). 

O programa acabou por ser suspenso oficialmente em Junho de 2013, ainda antes da publicação dos trabalhos em revistas científicas. E foram gastos cerca de 33 milhões de euros, incluindo grandes quantias vindas da Commonwealth. “O problema foi sempre não existirem cientistas independentes a avaliar o programa”, justifica Filipe Pereira. “Começou com a melhor das intenções mas foi baseado no medo, na suposição, na especulação, na narrativa dos media e, ultimamente, no oportunismo”, refere Clive Marks, acrescentando que as críticas que surgiram dentro do programa foram ignoradas.

Actualmente, ainda há fundos da Commonwealth atribuídos ao governo da Tasmânia para investigar os avistamentos. “Simplesmente, abandonaram o nome [do programa]. Hoje as pessoas continuam a ‘ver raposas’ na Tasmânia sem qualquer prova”, salienta Clive Marks. Quanto ao programa, há ainda uma investigação da Comissão de Integridade da Tasmânia e várias pessoas já foram demitidas.

Então, como é que se avistaram raposas que nunca existiram? “As pessoas da Tasmânia nunca viveram com raposas, ao contrário das da Austrália. Podem confundir raposas com outros animais”, justifica Filipe Pereira. E refere ainda que as “observações” eram sempre mais frequentes depois de surgirem notícias na comunicação social, como aliás é referido num artigo científico deste ano em que participa também Inês Soares, da Universidade de Coimbra. “Um indicador anual das raposas nas notícias entre 2001 e 2010 também estava fortemente associado aos registos anuais dos supostos avistamentos”, refere o artigo. Algumas pessoas também brincavam com a situação e inventavam que tinham visto a raposa. “Havia muitos rumores e especulações”, reforça Clive Marks.

Há mais: uma espécie de marsupial da ilha chama-se Trichosurus vulpecula, que significa “pequena raposa”. “É possível que muitas pessoas lhe tenham chamado ‘raposa nativa’ ou o tenham confundido com raposas-vermelhas durante o século XIX”, diz Clive Marks. E este não é um caso único dentro das espécies que não existem e são vistas pelos tasmanianos. “O já extinto tigre-da-tasmânia é ‘visto’ muitas vezes na Tasmânia”, lembra.

Será a raposa europeia na Tasmânia um novo monstro do Lago Ness e um novo Yeti, o fantasioso Abominável Homem das Neves dos Himalaias?

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