O sábio Macron e o laboratório francês

Se Macron pode ser suspeito de um excesso de auto-suficiência, o certo é que ele soube encarnar a única alternativa existente às velhas direita e esquerda exangues face aos extremismos de Le Pen e Mélenchon.

O Presidente Emmanuel Macron concedeu esta semana uma extensa entrevista à revista Le Point, a primeira desde a sua chegada ao Eliseu e onde quebra um longo silêncio nos seus contactos directos com a imprensa. À primeira vista, o que mais impressiona nessa entrevista é a abundância estonteante de detalhes com que Macron aborda os temas prioritários do seu mandato, especialmente a reforma da legislação laboral, além das questões económicas e orçamentais, as políticas de educação e defesa ou ainda o futuro da Europa e as relações internacionais, com a França assumindo claramente o papel de grande potência (e devendo “permitir à Europa tornar-se líder do mundo livre”).

Essa abundância de detalhes, sobretudo no que se refere à legislação laboral, chega a tal ponto que desafia a capacidade normal – mesmo para um francês medianamente informado – de discernir as questões contraditórias da reforma que o Governo francês lançou esta semana. Por um lado, pretende-se romper com as velhas malhas corporativas (sindicais e patronais) que têm bloqueado até agora as reformas numa área absolutamente estratégica, de forma a tornar o mercado de trabalho mais flexível e menos injusto para as categorias mais penalizadas pelo elevado desemprego e o trabalho precário (“o jovem, o pouco qualificado, o imigrado ou o descendente do imigrado”). Mas, por outro lado, essa flexibilização potencia, segundo os críticos de Macron, os riscos de insegurança no emprego para quem desfruta de um estatuto mais estável ou para quem se encontra à mercê da discricionariedade patronal. De qualquer modo, face à iniciativa do Governo, os parceiros sociais reagiram de forma desordenada – e apenas as forças sindicais e políticas mais radicais, como a CGT ou os “insubmissos” afectos a Mélenchon, prometem reacções nas ruas nos próximos tempos. (Uma comparação com o caso Autoeuropa em Portugal seria pertinente).

Se Macron parece ter a lição bem estudada – teme-se que até demais – e a confiança em si mesmo atinge níveis superlativos quando celebra as virtudes do “heroísmo político”, a sequência dos acontecimentos nas várias áreas prioritárias de intervenção governativa suscita múltiplas interrogações e incertezas, tal como é confirmado pelas sucessivas quedas nas sondagens registadas pelo Presidente desde a sua eleição.

Ainda assim, contra factos não há argumentos: a França herdada por Macron precisa efectivamente de um tratamento de choque se quiser sair da modorra declinista em que se deixou enredar ao longo das últimas duas décadas. E se Macron pode ser suspeito de um excesso de auto-suficiência, o certo é que ele soube encarnar, com indiscutível genialidade política, a única alternativa existente às velhas direita e esquerda exangues face aos extremismos soberanistas (ou até delirantes) de Le Pen e Mélenchon.

O laboratório de transformações políticas que é a França macroniana constitui, apesar de todas as reservas legítimas e as ambiguidades ou contradições dos caminhos ensaiados, o único cenário de renovação que se apresenta também a uma Europa em busca de saída urgente para a sua crónica crise de identidade. Macron tem pelo menos, entre outras virtudes, a vantagem de chamar as coisas pelos seus nomes, nomeadamente quando confronta a Polónia com a deriva autoritária do seu Governo. E tem igualmente a audácia – qualidade raríssima entre os actuais dirigentes do Velho Continente – de procurar a convergência de velocidades possível entre os países europeus do Leste ao Ocidente, com respeito pelos valores democráticos e civilizacionais comuns.

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