O meu problema com Aníbal Cavaco Silva

Cavaco sempre foi encarado como um arrivista, não tanto por ter vindo da província, mas por nunca ter deixado de ser provinciano.

Não tenho dúvidas de que uma das principais razões para Cavaco Silva ser tão odiado se deve o facto de ele ser a prova viva, como nenhum outro político o é, da existência de um fosso largo, longo e profundo entre as elites portuguesas e o português comum. Cavaco sempre foi encarado como um arrivista, não tanto por ter vindo da província, mas por nunca ter deixado de ser provinciano. Nascer e crescer em Boliqueime não tem mal algum para a corte lisboeta – pelo contrário, é até uma prova de que o elevador social funciona –, mas tem muito mal permanecer em Lisboa com os trejeitos da província, sem nunca assimilar a cultura oligárquica e os bons modos da capital. Era isso que a direita de O Independente não suportava, e é isso que a esquerda queque socialista e os privilegiados do Bloco ainda não conseguem engolir – como foi possível que aquele homem tivesse conseguido quatro maiorias absolutas, feito único e dificilmente repetível na História de Portugal?

Para esses, Cavaco é tanto mais irritante quanto mais incompreensível lhe parece o seu sucesso político. Todos nós, que temos voz nos media, gostamos de acreditar que sabemos aquilo que o povo sente e pensa, e não poucas vezes atrevemo-nos até a falar em nome dele. As quatro maiorias de Cavaco demonstram a arrogância desse olhar – do qual, diga-se, não me estou a excluir. Para mim, há dois Cavacos completamente distintos, e eu só percebo metade. Tendo atravessado toda a adolescência e o início da minha vida adulta com Cavaco Silva como primeiro-ministro, compreendo muito bem o período 1985-1995 e as razões do seu sucesso. Sobretudo para quem, como eu, cresceu em Portalegre, as melhorias na qualidade de vida foram gigantescas e bem mais palpáveis do que nos circuitos privilegiados da capital.

Já a metade de Cavaco presidente da República é todo um outro mundo, que me é impossível de elogiar e, em boa parte, de compreender, na medida em que falhou em tudo o que era mais importante. Cavaco foi aquilo que cada tempo lhe permitiu: um bom primeiro-ministro numa altura em que chovia dinheiro da CEE e o país queria mudar; um mau presidente da República quando a economia parou e o país se atirou para os braços de José Sócrates. Prosperou politicamente em tempos de prosperidade e afundou-se em tempos de estagnação económica e insídia moral. É legítimo duvidar que tenha marcado o seu tempo – é bem mais provável que se tenha deixado marcar por ele.

É por isso que o Cavaco Silva que apareceu na Universidade de Verão do PSD tanto me desagradou. Não foi por o ver atrevido e crítico daqueles que pregam o fim da austeridade pela frente e fazem cativações e aumentos de impostos por detrás, mas pelo discurso impante e altivo sobre o uso restrito da palavra presidencial. Vê-lo criticar a “verborreia frenética da maioria dos políticos dos nossos dias”, que falam muito sem que digam “nada de relevante”, demonstra bem o seu autismo político e a absoluta incapacidade para analisar a desgraça dos seus mandatos presidenciais. Sim, Cavaco nunca poderá ser acusado de verborreia – apenas de se deixar reduzir à absoluta irrelevância enquanto via o país afundar-se financeira e moralmente entre 2005 e 2011. Durante seis anos, Cavaco ou não viu ou, se viu, não agiu. Ora, se um presidente não serve para nos avisar de que há um primeiro-ministro a afundar o Estado e a assaltar todos os poderes, ele serve para quê, afinal? Entre uma múmia e Marcelo, Marcelo é a boa opção. 

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