Bora lá derrubar mais umas estátuas?

Por ser um povo “velho”, o povo português jamais permitirá qualquer derrube de estátuas tal como aquele que aconteceu nos EUA – mas isso não significa, obviamente, um qualquer branqueamento (passe a expressão) da História.

Os Talibans do Politicamente Correcto (TPC) lá conseguiram derrubar mais umas estátuas nos Estados Unidos da América (derrubar estátuas é, como se sabe, uma especialidade Taliban), mas não cremos que esse seja um (mau) exemplo que se venha a seguir na Europa, apesar do crescendo dos TPC também entre nós. É que os EUA são ainda, comparativamente, uma nação adolescente, mais permeável, por isso, a atitudes extremistas. Não é por acaso que os extremistas que (se) matam são, sem excepção, jovens – e não idosos (como se poderia esperar, dado que, nesse caso, poucos anos de vida teriam a perder).

Com efeito, tal como as pessoas, também os países mais velhos são menos permeáveis a atitudes extremistas – em todos os planos, dos costumes às opções religiosas. Tal como as pessoas, também os países mais velhos são mais dados à tolerância, na sua ambivalência semântica: eu posso discordar do outro, posso até considerar que ele está errado, completamente errado, mas não é por isso que vou defender a sua aniquilação, a sua morte, nem sequer em forma de estátua.

Bem sabemos que os TPC não são dados a muitas leituras (seja de ensaio histórico, seja de ficção) mas, neste caso, bastaria que apreciassem cinema. É que grande parte da cinematografia americana que se debruça sobre a Guerra Civil não esconde uma grande simpatia pelos Confederados (aqueles cujas estátuas foram agora derrubadas). Dirão os TPC: prova de que os realizadores norte-americanos são também “supremacistas brancos”. Mesmo incluindo aqui o tão “bem-amado” Clint Eastwood, essa é uma acusação tão fundamentada quanto a recente acusação feita a Chico Buarque (a de que ele é “machista”). A ilação a tirar só pode pois ser outra, bem diferente.

Com efeito, se grande parte da cinematografia americana que se debruça sobre a Guerra Civil não esconde uma grande simpatia pelos Confederados é porque a questão da escravatura não era, de todo, a única questão em disputa. A montante e a jusante desta havia uma outra questão, não menor: a da (omni-)presença do Estado, representada pelo Norte “yankee”. Desde logo por isso, o Norte estava condenado a vencer: representava a modernidade da época. Mas isso não impediu, até aos dias de hoje, uma cerca nostalgia, decerto mitificada, por uma vivência literalmente mais libertária, sem a (omni-)presença do Estado que nessa Guerra Civil o Sul, para o bem e para o mal, representava.

Por tudo isso, estarem agora, em pleno século XXI, a derrubar estátuas dos líderes dos Confederados denota, nos EUA, um estado de adolescência não menor do que o sinalizado pela eleição de Donald Trump. Como dissemos, não cremos que esse seja um (mau) exemplo que se venha a seguir na Europa, apesar do crescendo dos TPC também entre nós e das suas ameaças. Na Grã-Bretanha, por exemplo, há quem pretenda também derrubar as estátuas do Almirante Nelson – e em breve, decerto, chegarão às estátuas do Churchill, alegando algumas opiniões suas menos politicamente correctas. E, em Portugal, também há muito por onde escolher. Só em Lisboa e na zona de Belém, temos as estátuas de Afonso de Albuquerque e de todos os restantes navegadores no Padrão dos Descobrimentos. Com o devido balanço, chegar-se-ia facilmente à Torre de Belém e ao Mosteiro dos Jerónimos.

Há não muito tempo, num fórum público alguém pretendeu convencer-me de que o “fascismo português tinha sido pior do que o fascismo alemão” – “pior” porque menos evidente e, por isso, menos susceptível de imediata repulsa. Com o colonialismo português, algo de similar se passa, a uma escala maior. Há muita gente que acha que ele foi bem pior do que os restantes colonialismos europeus por ter sido menos evidente e, por isso, menos susceptível de imediata repulsa – não só por parte dos portugueses, como, sobretudo, por parte dos povos colonizados.

Por isso, para estes “libertadores” da vigésima quinta hora, os sinais de afecto que os descendentes dos povos colonizados manifestam amiúde pelos portugueses denotam uma descolonização mal cumprida. Para os TPC cá de casa, os descendentes dos povos colonizados por Portugal não deveriam senão odiar-nos, tal como, em geral, acontece com os restantes povos colonizados relativamente aos seus povos colonizadores (veja-se, por exemplo, o que se passa em França, em grande escala, com os descendentes dos magrebinos que lá vivem). Por isso, os TPC cá de casa sentem um indisfarçável mal-estar quando se fala de Lusofonia. É que a Lusofonia é, por si só, em toda a sua incipiência, a prova de que os TPC cá de casa não têm, de todo, razão.

Por ser um povo “velho”, o povo português jamais permitirá qualquer derrube de estátuas tal como aquele que aconteceu nos EUA – mas isso não significa, obviamente, um qualquer branqueamento (passe a expressão) da História. Recuperando um exemplo já dado, ninguém considera que a acção de Afonso de Albuquerque seja exemplar para os dias de hoje – mas isso não implica, de todo, derrubar a sua estátua. Por falar em estátuas: provavelmente, a estátua mais marcante em Lisboa é a do Marquês de Pombal. Pois bem: do mesmo modo diremos que ninguém considera que a acção de Marquês de Pombal seja exemplar para os dias de hoje.

Ainda bem pois que os que os TPC cá de casa, tendo uma crescente visibilidade mediática, nunca terão um peso real na nossa sociedade (e eis aqui um ponto a considerar por parte de todos aqueles que se preocupam com a crise dos “media” em Portugal: pela nossa parte, estamos cada vez mais convictos de que esta é uma das razões maiores dessa crise). Se o viessem a ter, seria uma razia de monumentos históricos. Um último exemplo: o castelo de São Jorge, símbolo (ainda que póstumo) da conquista de Lisboa. Já estamos a ouvir os TPC cá de casa a sussurrar que essa conquista foi ilegítima e uma agressão religiosa (neste caso, do cristianismo ao islamismo). Decerto, o povo português, em geral, não se reconhece hoje nas práticas de 1147. Mas não a ponto, estamos certos, de lamentar o resultado do que então aconteceu. Deixem pois o nosso castelo em paz, bem como as nossas estátuas.

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