Houston cresce à "Velho Oeste" e isso ajuda às cheias

O Texas é o estado mais desregulado dos EUA e a sua maior cidade cresce como lhe apetece, além de ter um desadequado sistema de drenagem. Foi um campo fértil para o Harvey a fazer estragos.

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Adrees Latif/Reuters

Houston auto-intitula-se “a cidade sem limites” para transmitir a promessa de oportunidades infindáveis. Mas é também a maior cidade dos EUA sem leis de zonamento, escolha assente numa abordagem pouco interventiva em termos de planeamento urbano, e que pode ter contribuído para as cheias catastróficas provocadas pelo furacão Harvey, que deixaram em perigo milhares de habitantes.

O crescimento praticamente descontrolado, incluindo em zonas propensas a inundações, fez diminuir a já de si limitada capacidade do solo em absorver a água, de acordo com ambientalistas e especialistas em uso do solo e em desastres naturais. E o sistema de drenagem da cidade – uma rede de reservatórios, bayous [pequenos cursos de água que correm para leste, em direcção à baía de Galveston] e, em último recurso, estradas que contêm e escoam a água – não foi projectado para lidar com as enormes tempestades que são cada vez mais comuns.

É inegável que a precipitação recorde que se verificou em Houston e nas áreas circundantes durante esta semana teria causado grandes estragos, mesmo que estivessem em vigor limites mais rigorosos à construção e melhores sistemas de escoamento. E os governantes locais têm defendido a abordagem da cidade ao desenvolvimento.

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Evacuação de moradores de Houston teve de se fazer por barco Adrees Latif/REUTERS

Mas o desastre a que temos vindo a assistir – mais de 50 mortes, um milhão de deslocados e 30% do condado de Harris, que inclui Houston, submerso – está a fazer relançar o escrutínio sobre o planeamento urbano de Houston e o seu ímpar sistema de controlo de águas das cheias.

“Nada poderia evitar que o Harvey causasse estragos generalizados, mas não tenho dúvidas de que podiam ter sido substancialmente menores”, afirma Jim Blackburn, membro da direcção de um centro de investigação da Universidade Rice que se dedica à previsão de grandes tempestades e formas de evacuação em caso de desastre natural.

Há muitos anos que os governantes de Houston e do condado de Harris resistem aos pedidos para que se legisle de forma mais restrita sobre a construção. As propostas de grandes projectos de contenção de cheias, imaginadas na ressaca da passagem do furacão Ike, em 2008, foram esquecidas. E os próprios residentes da cidade votaram três vezes contra a promulgação de uma lei de zonamento, a última das quais em 1993.

Em vez de impor restrições ao uso que os proprietários podem fazer das suas terras, Houston tem tentado encontrar na engenharia a solução para a drenagem da água. O escoamento da região depende dos bayous e de canais de cimento, e as ruas e as bacias de retenção são pensadas para aguentarem e conterem o excesso de água.

Em anteriores declarações públicas, os responsáveis do Centro de Controlo de Inundações do Condado de Harris rejeitaram a ideia de que o crescimento da cidade é o principal responsável pelas grandes inundações, contestando as avaliações científicas. Os mesmos responsáveis não se mostraram esta semana disponíveis para declarações.

Bill St. John, engenheiro civil reformado e antigo gestor de projectos do distrito, afirmou em entrevista: “Há quem diga que eram necessárias leis e regulamentação mais severas. Mas agora é fácil dizer isso. As leis e as regras eram as necessárias, numa altura em que não havia provas científicas que determinassem que deviam ser mais restritas.”

Mas para uma cidade construída numa planície costeira de baixa altitude e erigida sobre um solo argiloso que está entre os menos absorventes do país, esse tipo de abordagem não é suficiente, dizem muitos especialistas, que defendem a elevação das novas habitações e a proibição da construção nas zonas mais propensas a inundação.

De acordo com a análise que o The Washington Post fez às zonas com maior risco de inundação, foram construídas, desde 2010, pelo menos quatro mil casas e empresas na área de planície que o governo federal designou oficialmente como sujeita a “tempestades de 100 anos” [100-year floodplain, estudo que avalia as probabilidades de inundação para efeitos de planeamento urbano e de prémios de seguro]. Há outras cidades que, com diferentes graus de regulamentação, permitem a construção nas planícies ribeirinhas.

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Evacuação de moradores na zona Noroeste de Houston Adrees Latif/REUTERS

“Houston é o Velho Oeste do desenvolvimento, o que quer dizer que basta a menção de regulamentação para que se faça ouvir uma reacção hostil das pessoas, que a consideram uma infracção ao direito de propriedade e um travão ao crescimento económico”, diz Sam Brody, director do Centro para as Praias e Costas do Texas, da Universidade Texas A&M. “O sistema de águas pluviais não foi pensado para nada muito mais possante que uma chuva forte que aparece a meio da tarde.”

Ao mesmo tempo, as tempestades severas estão a tornar-se mais frequentes, dizem os especialistas. As leis de construção da cidade foram redigidas a pensar no que antes era considerado o pior cenário possível – uma “tempestade de 100 anos”, ou seja, uma tempestade que os estudos afirmam só ter 1% de probabilidade de acontecer a cada ano. Contudo, este tipo de tempestades tornou-se bastante comum. O Harvey, que desde terça-feira passada despejou até 127 centímetros de água em algumas zonas, é a terceira tempestade deste tipo a atingir Houston nos últimos três anos.

Em Maio de 2015, sete pessoas morreram após a queda de 30 centímetros de chuva em dez horas, na que ficou conhecida como a “Inundação do Memorial Day”. E em Abril de 2016 morreram oito pessoas durante uma tempestade em que caíram 43 centímetros de chuva.

Tal como outras áreas costeiras, Houston e os arredores têm-se repetidamente virado para os contribuintes federais quando é preciso pagar a reconstrução.

O condado de Harris recebeu, nas últimas quatro décadas, cerca de três mil milhões de dólares da Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA), mostram os registos federais. É o terceiro maior beneficiário de fundos do Programa Nacional de Seguros contra Inundações, só atrás das freguesias de Orleans e de Jefferson, no Louisiana, arrasadas pelo furacão Katrina em 2005.

Nos anosde 1940, o Corpo de Engenharia do Exército construiu dois enormes reservatórios para servirem de áreas de contenção durante grandes chuvadas. Nas décadas seguintes, a cidade desenhou um sistema de canais de cimento e bayous alinhados com fundo pavimentado, de modo a desviar o curso da água.

“O sistema depende de bayous que têm uma capacidade limitada, e que são assim desde sempre”, afirma Gerry Galloway, professor de engenharia civil na Universidade de Maryland e professor convidado na Texas A&M. “Durante muitos anos, essa foi provavelmente uma boa maneira de lidar com o problema. Mas à medida que a cidade cresceu e se desenvolveu, a capacidade de escoamento foi diminuindo cada vez mais.”

Em 2015, a população de Houston atingiu os 2,2 milhões de pessoas, um aumento de 25% face a 1995. O condado de Harris conheceu um salto ainda maior, crescendo 42% nesse período, e tem hoje 4,4 milhões de habitantes. O crescimento da população levou a uma expansão da cidade, que se estendeu para terrenos alqueivados que serviam de esponja natural.

Entre 1992 e 2010, foram pavimentados 30% dos pantanais da pradaria costeira que envolve o condado, segundo um relatório de 2010 da Texas A&M.

Os projectos de alargamento dos bayous e de construção de milhares de bacias de retenção não avançaram a par dos telhados, estradas e parques de estacionamento necessários para acomodar os cerca de 150 mil novos residentes que chegam todos os anos, acusam os especialistas. Em substituição, foram construídas estradas abaixo do nível do solo e desenhadas para conter o excesso de água em caso de transbordo.

“A filosofia era que era preferível inundar as estradas do que as nossas casas”, diz D. Wayne Klotz, engenheiro de recursos aquíferos, director-sénior da empresa RPS Klotz Associates e antigo presidente da Sociedade Americana de Engenheiros Civis.

Contudo, quando as estradas estão inundadas, a evacuação torna-se mais difícil.

Nos dias anteriores à chegada do Harvey, as autoridades da cidade pediram aos habitantes que se mantivessem em casa. Mas nas redes sociais, autarcas locais previram a queda de mais de 120 centímetros de água – projecções superiores às previsões meteorológicas, mas que se vieram a revelar mais próximas da realidade.

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Um habitante de Houston salva das águas álbuns de fotos de família TANNEN MAURY/EPA

E quando a chuva chegou, as estradas transformaram-se em rios, obrigando a salvamentos porta-a-porta com o auxílio de barcos.

Em muitas zonas da cidade, nomeadamente nas mais antigas, a água que não fica nas estradas flui para as casas ao nível do solo, muitas construídas sobre lajes. Jim Blackburn afirma que a exigência de maior elevação na construção de casas nas zonas mais sujeitas a inundação – as regras actuais obrigam a 30 centímetros acima do nível de uma “tempestade de 100 anos” – teria sido suficiente para diminuir as perdas causadas pelo Harvey e por outras tempestades anteriores.

John Jacob, director do Programa da Bacia Hidrográfica Costeira do Texas e professor na Texas A&M, conta ter ficado particularmente exasperado ao saber de um lar de idosos em Dickinson, a sudeste de Houston, onde os residentes em cadeiras de rodas ficaram com água pela cintura. Só foram salvos após fotografias da sua situação se terem tornado virais nas redes sociais.

“Isso nunca devia ter sido construído”, diz Jacob acerca do lar, situado do outro lado da rua que marca o limite oficial das terras em risco de inundação. “Estamos a pôr as pessoas em perigo.”

Jacob reside em Eastwood, bairro a leste da baixa, que diz ter sido poupado aos estragos porque muitos lotes estão acima do nível da estrada, e porque as casas foram construídas sobre alicerces que incluem um espaço com vigas, ao estilo de um molhe. Este método aumenta o custo das casas em milhares de dólares e não é exigido pela autarquia ou por qualquer regulamentação municipal.

Todos os 34 municípios do condado de Harris têm os seus próprios planos para lidar com as inundações, cujas causas e soluções se estendem muito para além das suas fronteiras.

“Nunca houve um plano abrangente que tomasse em consideração toda a área que afecta Houston”, diz Galloway.

No ano passado, o supremo tribunal do estado indeferiu uma acção judicial colectiva apresentada por 400 proprietários do condado que sofreram, por três vezes em cinco anos, perdas devido a inundações – na tempestade tropical Frances em 1998, na tempestade tropical Allison em 2001, e numa outra tempestade não-baptizada em 2002.

O condado alegou em tribunal ter investido dezenas de milhares de dólares na prevenção de inundações, e refutou a acusação dos proprietários de que os empreiteiros tinham “rédea solta”. A maioria do tribunal concordou, afirmando que os residentes não tinham conseguido estabelecer uma ligação inequívoca entre a construção numa parte da bacia hidrográfica e as inundações que os tinham atingido.

“Até os proprietários reconhecem que as inundações foram resultado de vários factores” – deliberou o tribunal – “incluindo actos de Deus.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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