Selfie Weiwei

Em Human Flow, o documentário que o artista chinês rodou ao longo de ano e meio e atravessando 22 países, a crise dos refugiados é apenas um cenário de Instagram.

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Houve um momento em que Ai Weiwei pareceu aventurar-se pelo logro, se calhar pelo embuste, que é a pretensão de que um cineasta é capaz de agarrar a realidade e fazer com ela o mundo. “Um filme é sempre uma mentira." Parecia um lúcido gesto em direcção à autocrítica do realizador – não dele especificamente, de todos os que interceptam o mundo com uma câmara de filmar. Human Flow, o documentário que o artista chinês apresentou em competição no Festival de Veneza, bem precisava desse complemento de dúvida. Mas entretanto a conferência de imprensa foi para um caminho que interessa mais a Ai Weiwei: Ai Weiwei.

Disse-se sortudo por fazer ao contrário do que faz a maior parte dos artistas, que não se atrevem pelo espaço do activismo político e social. Disse-se sortudo por exercitar essa prática (que ele vê como “uma responsabilidade”) de forma eficaz, através da escultura, da performance, da Internet, das redes sociais. Descobriu que as pessoas “são naturalmente ansiosas por comunicar”, que contar uma história é para ele cada vez mais a concretização de algo de essencial no ser humano, por isso experimentou atravessar a fronteira do trabalho individual, solitário, em direcção ao cinema, em que está rodeado por uma equipa.

Antes disso tinha dito – mais do que um vislumbre do artista a produzir eficazmente – que Human Flow, o documentário que rodou, ao longo de ano e meio e atravessando 22 países, sobre a crise dos refugiados, “não é um filme sobre um acontecimento, é um filme sobre a forma como olhamos para ele, não é um filme sobre ‘eles’, é um filme sobre ‘nós’”.

Bem gostaríamos de ter visto um olhar em Human Flow. Bem gostaríamos de ter visto essa determinação ética, moral e política no filme que Ai Weiwei começou a rodar com o seu telemóvel e que entretanto foi ganhando escala de produção, e drones, para poder atravessar o mundo. Bem gostaríamos de ver que em Human Flow “eles” fazem parte de “nós”, em vez de ver... Ai Weiwei, a sua eficácia comunicativa, a ânsia de comunicar global. (Mas se fosse assim, talvez Human Flow não estivesse em competição em Veneza ao lado de George Clooney).

Dois anos de rodagem, cerca de mil horas de material rodado, duas horas e meia de duração, e não há uma única história, uma personagem, um rosto a que o filme se dedique de corpo e alma? Com menos meios, as reportagens televisivas são capazes de simular generosidade. Em Human Flow “eles” são sempre alguém por intermédio de Ai Weiwei, cuja presença no plano, estudadamente oblíqua, como se “aparecesse”, algumas vezes se aproxima da intervenção divina.

Há aquela interacção em que artista e refugiado, por solicitação do artista, trocam passaportes, e em que depois o refugiado retorque que o artista pode ficar com a sua tenda, e então o artista (julgamos vislumbrar embaraço no artista, que logo disfarça... mas poderemos estar enganados...) diz que sim, mas nesse caso o refugiado fica com o seu estúdio de Berlim... É isto a “experiência imersiva” que por aqui foi aplaudida? Deve ser por causa das plongées a mergulhar sobre as tapeçarias humanas que uma catástrofe permite ao artista “pintar” do alto.

Os refugiados são um "motivo", é essa a indecência de Human Flow, mostram que Ai Weiwei passou por um cenário. O espírito da coisa não anda longe de um Instagram. Se isto não fosse dissimulado – ainda com pedaços de poesia e resumos informativos –, Human Flow poderia ser mesmo só selfies no Afeganistão, na Grécia, na fronteira EUA-México...

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