“Existem mais de quatro mil filhos e filhas de padres, no mínimo, pelo mundo"

Vincent Doyle, psicoterapeuta e fundador do Coping – Children of Priests International, acredita que o Vaticano vai pronunciar-se sobre o problema dos padres que se tornam pais e sustenta que as orientações dos bispos irlandeses são extravasáveis para o resto do mundo.

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Vincent Doyle, em 2014, na Praça de São Pedro, a entregar uma carta ao Papa sobre os filhos de padres DR

O irlandês Vincent Doyle descobriu aos 28 anos que o homem a quem se habituara a chamar padrinho, o padre de uma diocese rural com quem costumava passar largas temporadas entretanto falecido, era, afinal, o seu pai biológico. O sofrimento que isso lhe causou foi o que levou este psicoterapeuta a lançar uma rede de apoio às pessoas que cresceram numa situação similar. Após anos de diálogo com a Conferência Episcopal Irlandesa, conseguiu, em 2015, que o arcebispo irlandês Diarmuid Martin concordasse suportar os custos do apoio terapêutico que vier a ser requerido por filhos de padres e que os bispos irlandeses consensualizassem directrizes no sentido de obrigar os padres que se tornaram pais a assumirem-se enquanto tal.

O que é que o documento dos bispos irlandeses vai mudar na prática? Será aplicável apenas à Irlanda ou crê que este exemplo será seguido por outras conferências episcopais?

Se ler o documento com atenção, diz-se que que o papel da mãe é importante em todos os contextos culturais. Parece-me que o que estão a dizer é que estas normas não se aplicam apenas à Irlanda. Claro que há padres irlandeses no estrangeiro, mas penso que isto é interpretável como sendo aplicável noutros contextos: europeu, africano, asiático, norte-americano... É um pormenor em que ninguém parece ter reparado e é, na minha opinião, um dos aspectos mais importantes do documento. Por outro lado, a importância deste documento mede-se pelo facto de reconhecer o problema publicamente, pela primeira vez. Até agora - penso que será assim também em Portugal - ninguém falava disto. Toda a gente conhece o problema mas ele é omitido. Isto cria muito medo nas mulheres. E, quando uma mãe tem medo, a criança tem medo também. Não culpo as mães, elas são igualmente vítimas, na maioria dos casos.

Muitas terão sido forçadas a assinar acordos de confidencialidade para conseguir algum tipo de suporte financeiro.

Nestes cenários, foram encostadas à parede. Elas têm que tomar conta de uma criança, têm medo, não têm ajuda… Estamos a tentar pôr termo a isto e dar-lhes poder, para que as mulheres possam assumir-se como ser humano e como mãe, não apenas como mãe mas como um ser humano que é mãe. Isto é importante que se reconheça.

Encontrou-se com o Papa Francisco em 2014 e entregou-lhe uma carta expondo este problema. Confia que ele se pronunciará sobre isto, numa altura em que está a expirar o prazo dado pela ONU para que o Vaticano faça um levantamento das crianças ou pessoas nesta situação?

O embaixador do Vaticano nas Nações Unidas em Genebra, Ivan Jurkovic, confirmou-me, por escrito, que está a ser preparado um relatório pela Santa Sé sobre este assunto. Não penso que vá ser apresentado até 1 de Setembro, mas garantiram-me que o relatório está a ser preparado. O Vaticano irá também reconhecer que os filhos de padres existem, que este problema existe, mas não sei o que vai dizer. Espero encontrar-me com o embaixador do Vaticano em breve e vou recomendar que eles implementem estas guidelines, porque penso que são muito boas e históricas. Outro ponto importante: o Vaticano pode adiar o prazo, alegando tratar-se de um problema sobre o qual a Igreja nunca se debruçou, mas isto não é verdade porque os bispos irlandeses debruçaram-se sobre este assunto durante um ano. Por isso, não há desculpas para qualquer atraso.

Será possível ou justificável em algumas circunstâncias que estas pessoas, ou as respectivas mães, reivindiquem da Igreja algum tipo de compensação financeira?

Não sou especialista na lei. O objectivo do Coping é que as pessoas se tratem psicologicamente, curem o seu trauma e tomem decisões informadas por elas próprias. Pode ser que um especialista na lei conclua que o trauma psicológico justifica uma compensação financeira, talvez; mas antes de chegarmos aqui é importante que as pessoas se comprometem com uma cura psicológica.

Qual será a real dimensão deste problema?

Ninguém sabe quantas pessoas no mundo estão nesta situação. O único facto é: sim há filhos de padres, só Deus sabe quantos. Agora, o Coping foi posto online em Dezembro de 2014, sem termos dito a ninguém, nunca fizemos publicidade nem emitimos um press realease. O que sabemos, a partir do Google Analytics, é que em 31 meses fomos acedidos por 14.500 pessoas de 175 países. Hoje, depois de o jornal Boston Globe ter publicado a reportagem, mais de mil pessoas ligam-se por dia ao site e fazem download da rubrica Self Help.

Estes números indicam uma necessidade massiva e global. O que é que sabemos? Em 1991, um padre sul-africano, Victor Kotze, publicou um estudo em que 45% dos padres entrevistados admitiam ser sexualmente activos. Em 1988, um jornalista e padre dominicano, David Rice [que abandonou o sacerdócio para se casar] publicou um livro, Shattered Wows, que mostrava que no Peru 80% dos padres tinham famílias [mulher e filhos]. Há dois meses, a Igreja Católica nas Filipinas admitiu que um em cada cinco padres têm família. Mas vamos subestimar o problema: há cerca de 450 mil padres no mundo, se um em cada 10 padres não for celibatário e se um caso em cada destes 10 casos resultar numa gravidez, significa isto que existem mais de quatro mil filhos e filhas de padres, no mínimo, pelo mundo. É a estimativa mais conservadora. Não há forma de saber quantos são realmente, por isso não se pode subestimar o problema alegando que são uma minoria. O único facto é este: sim, os filhos de padres existem. É um facto.

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