A "paternidade responsável" também é isto

A Igreja Católica da Irlanda acaba de tomar uma decisão inédita e de grande importância simbólica: todos os padres que tenham violado o voto de celibato e se tenham tornado pais devem “pôr os interesses das crianças em primeiro lugar”

A mesma igreja que rejeita a contracepção artificial, a interrupção voluntária da gravidez ou a adoção por casais homossexuais deveria ter como imperativo categórico o reconhecimento de que qualquer ser humano tem direito a saber quem são os seus progenitores. Mesmo que um deles seja um padre católico. Para usar expressões tão caras ao catolicismo, é um imperativo ético e moral que assim seja. Foi isso o que fez a muito tradicional e católica igreja irlandesa, cuja conferência episcopal acaba de tomar uma decisão inédita e de grande importância simbólica: todos os padres que tenham violado o voto de celibato e se tenham tornado pais devem “pôr os interesses das crianças em primeiro lugar”.

A decisão vem na sequência de uma recomendação do Comité dos Direitos das Crianças das Nações Unidas para que o Vaticano identificasse as crianças filhas de padres e garantisse os direitos mais básicos dos menores, cujo prazo termina esta semana, e de todos os escândalos do foro sexual divulgados nos últimos anos, com destaque para os trabalhos jornalísticos do Boston Globe. Trata-se de algo ao qual o Papa poderia chamar “paternidade responsável”.

É sintomático que a Igreja Católica irlandesa esteja disposta a acabar com a hipocrisia e a assumir que a questão existe e que os direitos das crianças estão acima de quaisquer outros. Durante séculos, a igreja encobriu de forma irresponsável a paternidade dos seus membros, fazendo dela um autêntico tabu, para não beliscar a santidade do  voto de celibato, limitando-se a transferir os padres em causa para outra paróquia. A decisão irlandesa é, além do mais, coerente, no que representa de assunção da culpa e de arrependimento.

É um bom exemplo e os bons exemplos devem ser seguidos. Será a Conferência Episcopal Portuguesa capaz de algo semelhante? Dificilmente haverá coragem para discutir tema tão assustador para a hierarquia católica. Entre o direito consagrado por lei a conhecer a identidade dos progenitores e a coragem de assumir que o celibato obrigatório não é tão respeitado como a lei da gravidade vai uma grande distância dogmática. Como diz o seu porta-voz no PÚBLICO de hoje, não é expectável por cá qualquer atitude semelhante. O teólogo Anselmo Borges pensa o contrário: “A igreja não pode pregar os direitos humanos aos outros sem os praticar dentro dela própria”. Não, pois não?

 

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