Costa, uma só frase… e toda a manipulação

Este passe de mágica a que sucumbiu António Costa, menos hábil e mais habilidoso do que o costume, é altamente censurável, é mesmo deplorável. Este tipo de retórica insidiosa, visando visceralmente a pessoa e não as ideias, é inaceitável.

1. Vale a pena ver e ouvir cem vezes a acusação que, no discurso da rentrée, António Costa fez a Passos Coelho. Nessa curta, mas incisiva frase, Costa acusa Passos de criticar os bombeiros todos os dias. A frase é curta, mas diz muito, diz quase tudo, talvez diga mesmo tudo.

A acusação é grosseiramente falsa. E o Primeiro-Ministro que, para lá de inteligente, experiente e hábil, não é ingénuo, tem plena consciência da falsidade da afirmação. Não tem apenas consciência da falsidade, ele tem intenção, deliberada e manifesta, de produzir a falsidade. Costa sabe bem – até porque é isso que lhe dói e dói profundamente – que é o Governo, a sua estratégia de prevenção e a coordenação político-administrativa do combate aos fogos que são objecto da censura de Passos. Em caso e em momento nenhum, versou os bombeiros ou a miríade de operacionais (de todos os departamentos do Estado, incluindo da Autoridade Nacional de Protecção Civil) ou os populares que tão abnegadamente prestam este serviço vital às populações e ao país.

A acusação não é apenas falsa, é também especiosamente insidiosa e maldosa. Costa sabe o sacrifício diário que fazem os bombeiros, pondo em risco a vida e a integridade física e psíquica. Sabe que essa generosidade e esse sentido do dever são merecida e genuinamente admirados pelo povo português. Sabe também que, entre os portugueses, é universal o sentimento de gratidão, reconhecimento e solidariedade para com essa entrega de milhares e milhares de homens e mulheres. Ao voluntariamente pôr na boca do líder da oposição uma atitude de crítica e de menosprezo para com a actuação dos bombeiros, está evidentemente a tentar atingir pessoal e moralmente Passos Coelho. Não está a criticar uma posição política, um pensamento ou uma acção; está objectivamente a visar o carácter e a formação moral do seu opositor. Na verdade, está a dizer que Passos é alguém insensível e até mesquinho, a ponto de não se eximir de criticar os sacrificados bombeiros em pleno tempo de combate aos fogos. Naquela frase de Costa, Passos Coelho não é apenas um político de que ele discorda, é alguém que “não tem dó, nem coração”. Com uma agravante: Costa não tem coragem de o dizer. Costa tem de recorrer a uma falsidade para, seguindo o conselho de um qualquer marketing maquiavélico, fazer a insinuação da maldade alheia.

2. Este passe de mágica a que sucumbiu António Costa, menos hábil e mais habilidoso do que o costume, é altamente censurável, é mesmo deplorável. Este tipo de retórica insidiosa, visando visceralmente a pessoa e não as ideias, é inaceitável. Era comum e expectável em Sócrates e na sua efabulação pantomineira do animal feroz. É triste, surpreendente e arrepiante em António Costa. Não sei como a comunicação social portuguesa deixou passar tão levianamente uma tirada deste calibre. Não compreendo como a opinião pública ainda não exigiu uma retractação ao Primeiro-Ministro. Como é possível que nenhum jornalista lhe tenha perguntado se ele acha mesmo que Passos Coelho criticou a actuação dos bombeiros? Se Costa entretanto não pedir desculpas, alguém tem de lhe fazer a pergunta. O mais provável, agora num estilo expectável em Costa, é obter uma resposta cínica. Mas, ao menos, que alguém o confronte com a desfaçatez e o descaramento dessa falsidade; que alguém o confronte com a insídia e a perfídia da sua insinuação.

3. Uma das coisas que este episódio revela, mas também todo o discurso da Pontinha, é a má consciência de António Costa quanto à gestão da crise dos fogos. As acusações fulanizadas a Passos e a Cristas, a tentativa de desviar o ângulo do vértice governamental para o terreno das operações e a vontade de circunscrever a questão à ordenação da floresta são a melhor prova de que Costa sabe que o seu Governo falhou e falhou tragicamente. E que tem de encontrar focos de distracção e bodes expiatórios para tentar desviar as atenções. A frase assassina que proferiu ilustra bem que é Costa quem está a fazer um despudorado aproveitamento político da tragédia incendiária deste verão. Quando acusa Passos de dizer mal dos bombeiros, quando sabe que Passos nunca disse nada de parecido, Costa não faz mais de que um escandaloso aproveitamento político. Quando sentencia urbi et orbi que não se pode criticar a protecção civil, nem a Ministra, nem o Governo, porque isso representa um “execrável aproveitamento político” da morte e da tragédia, que é isso senão uma forma supina e enviesada de aproveitamento político? A estratégia de combate aos fogos é matéria política, susceptível de escrutínio e de crítica. Sempre foi, não vai deixar de ser agora. Sempre foi, e mais tem de ser, quando há dezenas e dezenas de mortos pelo caminho, ainda por cima sem qualquer paralelo anterior. Não há aí nenhum aproveitamento político, há exercício obrigatório da responsabilidade cívica e política. Na tentativa de silenciamento, como, de resto, na caricata lei da rolha – que é tão-só um afloramento desse silenciamento – é que reside o verdadeiro e próprio aproveitamento político. Só em Portugal é que o apuramento da responsabilidade política e administrativa por uma tragédia mortal e pela ostensiva falha na estratégia de combate aos fogos de todo o verão pode configurar uma “instrumentalização política”.

4. Em linha com o que acima vem dito e sempre com o velho hábito da esquerda radical da fulanização e diabolização pessoal, acusa-se Passos Coelho de racismo e xenofobia. Assim faz o Bloco e, muito tristemente, o sector “filo-bloquista” do PS, aqui e ali com a conivência retórica do próprio Costa. O juízo sobre a actuação de Passos Coelho como chefe de Governo e como líder da oposição é livre e decerto justamente controverso. Mas quem, leviana ou dolosamente, põe em dúvida que ele acredita fundadamente na igualdade essencial de todos os humanos, conhece bem a diferença e a discriminação e é ferreamente anti-elitista comete uma gravíssima injustiça. E faz política da pior maneira.

 

SIM e NÃO

SIM. Ricardo Araújo Pereira. Respira-se mais liberdade depois do modo magistral como desmontou a bizarria do zelo censório do Governo no caso dos livros diferenciados para meninos e meninas.

NÃO. André Ventura. Declarações lamentáveis sobre a etnia cigana, instrumentalização da polícia municipal. Defesa da prisão perpétua e da pena de morte. Nada que se possa aceitar. 

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