António Costa e a crise da social-democracia

Se tudo se mantiver constante quem mais beneficia com esta solução governativa é o PS

Nas últimas décadas desenharam-se algumas tendências da social-democracia internacional. Os partidos sociais-democratas que apostaram no entendimento com a direita declinaram sustentadamente, os que adotaram uma política mais independente ou alinhada com a esquerda reforçaram a influência. Para além do PASOK grego e noutra medida do PSOE, os casos mais recentes que confirmam esta tendência são os da crise do PSF de François Hollande e do PvdA (Partido Trabalhista Holandês) de Jeroen Dijsselbloem, e o aparente renascimento do Partido Trabalhista britânico (Labour Party) de Jeremy Corbyn e do PS de António Costa.

Apesar de este padrão ser consistente, ele envolve diferenças que vale a pena especificar. Por exemplo, António Costa é um líder muito diferente de Jeremy Corbyn ou mesmo Bernie Sanders. Estes representam viragens à esquerda assumidas dentro da social-democracia, enquanto Costa estava preparado para governar com o apoio do PSD e Marcelo quando as circunstâncias o obrigaram a sobreviver com aliados à sua esquerda. Tratou-se de um puro expediente para “salvar a pele”. Por isso o governo do PS é uma manta de retalhos colados pelo cimento do poder, entre o núcleo duro conservador alinhado ideologicamente com as conceções da direita nas matérias da gestão do Estado e das relações com o setor privado, da economia, do mercado de trabalho e das relações com a UE, os “seguristas” convertidos e outros onde se destaca P. Nuno Santos.

Até agora a manutenção da natureza pública da Segurança Social, a paragem das privatizações e da liberalização do mercado de trabalho, a reposição limitada de rendimentos e outras medidas parcelares (tarifa social de energia, integração de precários, medidas na área florestal) bem como a oposição da direita esbateram aquela marca congénita. Mas a forma conservadora como o governo atua nas matérias fundamentais do sistema financeiro e das políticas de saúde, na sua vinculação à legislação laboral neoliberal ou na recusa em renegociar unilateralmente a dívida não deixam margem para dúvidas.

Isto mostra bem as potencialidades e os limites da atual maioria. Se tudo se mantiver constante quem mais beneficia com esta solução governativa é o PS, pois consegue canalizar as aspirações defensivas das massas trabalhadoras para um quadro negocial definido pelo seu governo e por algumas circunstâncias não previstas. Bloco e PCP até se podem manter à custa de uma tenaz capacidade para revelar publicamente a sua influência sobre a atividade governativa. Mas o atual modelo, tal qual vem sendo interpretado, serve sobretudo para assegurar a sobrevivência de um PS muito afastado sequer da radicalização à esquerda que atinge outras franjas da social-democracia internacional.

Mas as circunstâncias podem mudar, porque a subida do PS está construída à volta de alicerces frágeis, tais como a queda acentuada dos partidos de direita, que uma nova liderança ou mudança de orientação podem estancar, e a ausência de um desafio global de Bloco e PCP que confronte o governo com a sua natureza conservadora nas matérias fundamentais relacionadas com o sistema financeiro, a legislação laboral, as políticas de saúde, a renegociação unilateral da dívida ou a natureza pública de alguns serviços essenciais nas mãos de privados.

No dia em que estas circunstâncias mudarem, a profunda crise da social-democracia tornar-se-á ainda mais evidente e a grande incógnita será saber quem a irá aproveitar, se a direita com os mesmos ou outros protagonistas em articulação com o Presidente da República, se a esquerda com um novo governo capaz de enfrentar os problemas que este se abstém de abordar.

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