A memória não é coisa simples nem coisa de fiar

Camilo José Cela contou histórias da vida rural da Galiza com muito esmero e dedicação, com muita barbárie também. Episódios da ira galega, que é um sentimento que atira coices por tudo e nada.

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Pedro Cunha/Arquivo

Se não fosse dom Camilo José Cela (1916-2002), o escritor galego natural de Iria Flavia que em 1989 o Comité Nobel distinguiu com o prémio, já ninguém se lembraria da história do cego Gaudencio Beira, acordeonista e antigo seminarista. Nem dessa triste história nem daquela outra de Lázaro Codesal, que morreu jovem, não chegara ainda aos 22 anos e mataram-no com uma bala no ouvido quando estava à sombra de uma figueira, que é árvore cuja sombra traz propensão ao sossego mas também às más inclinações. Quem o diz, por palavras parecidas com estas, e com este ritmo de contar coisas em frases que caem como numa cascata, é o escritor no romance Mazurca Para Dois Mortos (Difel, 1990). Em alguns dos seus livros, dom Camilo fez um retrato muito terno, também pícaro e colorido, daquelas terras rurais da Galiza, os campos verdes onde homens e mulheres vivem, e amam, e pastoreiam os seus animais, e carvoejam os seus bosques e se governam, e morrem como no princípio dos séculos.

Há coisas nos seus romances que parecem ser assinaladas pelo dedo da ira, que como se sabe é um dedo retorcido e sarmentoso, e dom Camilo tinha muito jeito para, com muita ironia, apanhar as histórias dos homens e mulheres daqueles campos e aldeias, as histórias da ira galega, que é um sentimento que aparece quando menos se espera, uma ira que atira coices por tudo e nada, que escoiceia por todos os lados, que o digam as personagens do galego natural de Iria Flavia, uma ira primeva que fez com que matassem a louca de Espadañedo, mataram-na sem má intenção, isso é bem verdade, mataram-na para se entreter, enforcaram-na, mataram-na para matarem o tempo, a louca de Espadañedo mostrava as mamas enquanto comia avelãs, por vezes também enquanto olhava a água do ribeiro, e todos pareciam achar-lhe muita graça. Dom Camilo escrevia como se tivesse a língua solta e também uma verve crua, dom Camilo pintava retábulos da vida campestre galega com muito esmero e sensibilidade, com muita barbárie também, e ainda lhe juntava muita sexualidade exacerbada. Dom Camilo José Cela, o escritor galego que parecia tomar tisanas de mandrágora e de figueira-do-inferno, um escritor cheio de más inclinações, deixou estas histórias escritas num romance para que todos as soubessem, ou melhor, para que todos as lembrassem, que isto da memória não é coisa simples nem coisa de fiar, e como todos sabemos tem os seus dias maus e menos maus e assim-assim.

Quando dom Camilo José Cela acabou de escrever, com muito sarcasmo bem temperado a sangue, e também com muita mestria e refinamento, a história que começa com o passamento em Marrocos de Lázaro Codesal, o rapaz galego a quem a morte entrou pelo ouvido, chamou-lhe Mazurca para Dois Mortos. Nessa história o escritor contou ainda que Lázaro Codesal tinha na ideia o corpo de Ádega, em pelota e escarranchada sobre as ervas de um bonito outeiro algures nos verdes campos galegos, e corria ao fundo um rio de límpidas águas, que bem se ouvia o marulhar nas poldras, e nele havia um moinho de pedras de granito esbranquiçadas pela farinha. No lugar onde mataram Lázaro Codesal, um lugar seco e quente e onde nem os pássaros faziam poiso, dizia-se também que nem corria o vento, ninguém plantou uma aveleira para que o lembrassem, há hábitos que se vão perdendo, é certo, há terras que não sabem recordar os seus mortos, quanto mais ter preceitos para com os defuntos que chegam de outras terras.

Ma petite Marianne

Não foi Lázaro Codesal, o moço que foi feito defunto pela moirama, quem trouxe o título ao livro, mas sim o cego Gaudêncio Beira, o tal que foi seminarista e que os padres expulsaram quando cegou, e que mais tarde se tornou acordeonista e passou a ganhar a vida tocando numa casa de putas em Orense, a casa da Petinga. Gaudêncio morreu na Primavera de 1945, o cego enchia e vazava o fole do instrumento com muito esmero e dedicação e tinha um reportório variado e alegre, e às vezes arremedava alguém que era cheio de sentimento e de profundidade, mas havia uma mazurca, Ma petite Marianne, que era uma música um pouco amarga, que o cego Gaudêncio só tocou duas vezes, uma foi em Novembro de 1936, quando mataram Afoito, e outra em Janeiro de 1940, quando mataram Mocho, estes eram dois defuntos que são difíceis de esquecer.

Dom Camilo não sabe tocar nem acordeão nem violino, dom Camilo só sabe tocar gaita, mas é sabido que a gaita não se deve tocar dentro de casa, isto di-lo ele, que o toque da gaita pode atrair as bruxas e os maus ares, por isso dom Camilo passa as tardes na cama com Benícia. Benícia é sobrinha de Gaudêncio Beira, o acordeonista cego que ganha a vida na asseada casa de Petinga, uma casa de putas em Ourense, o importante é não ficarmos com nojo. Benicia é prima dos Gamuzos, que são nove e todos homens, na história de dom Camilo, na Mazurca para Dois Mortos, quase todos são família, como na Galiza inteira, primos mais chegados ou afastados, mas primos, só os Carroupos são uma gente que não se sabe de onde veio, se calhar trouxe-os o vento que sopra do sul, aquele vento que sopra antes de começar a chover, chove muito nestas histórias rurais de dom Camilo, chove sobre os rios e chove sobre a terra, chove sempre desde o dia de São Raimundo Nonato.

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