Cortes congelam ciência e sufocam universidades no Brasil

O presidente da Academia Brasileira de Ciências garante que os cientistas estão a fugir do país e há universidades que avisam que está a faltar o dinheiro para pagar a luz e a água.

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Universidade Federal de Minas Gerais inaugurou em Julho um “tesourômetro do conhecimento” que regista os cortes nas universidades públicas e na ciência desde 2015 e a iniciativa tem sido replicada por outras universidades brasileiras Carol Prado/UFMG
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Cortes na Ciência e Educação em 2017 no Brasil ultrapassaram os 40% Ueslei Marcelino/REUTERS

Os cortes na área da ciência, tecnologia e educação decididos pelo Governo brasileiro não são de agora. Porém, nos últimos meses os alertas para uma situação dramática no país, com o pagamento de bolsas e projectos de investigação congelados e universidades a sufocar sem dinheiro para pagar salários ou despesas básicas, subiram de tom. Há professores universitários a pedir emprego no Facebook, cartas abertas dirigidas ao ministro da Ciência, manifestos e entrevistas de reitores de várias universidades estaduais que traçam os cenários preocupantes sem futuro à vista.

“A situação financeira enfrentada pela Unicamp é dramática”, afirma Marcelo Knopel, reitor da Unicamp, universidade pública do Estado de São Paulo, que é considerada uma das melhores do país, numa entrevista publicada esta segunda-feira na Folha de S. Paulo onde revela que espera terminar o ano com um défice de mais de 200 milhões de reais (53 milhões de euros).

Este será talvez o exemplo mais recente de uma reacção ao clima de asfixia financeira que o país vive há já, pelo menos, dois anos. O Governo está a cortar em todo o lado e as medidas de austeridade também afectam a educação e a investigação científica com reduções de verbas em 2017 que ultrapassam os 40%.

O retrato da crise tem algumas variações com imagens de maior ou menor gravidade entre as universidades públicas. As universidades federais parecem estar em melhor situação do que as estaduais e, por outro lado, as estaduais de São Paulo terão mais hipóteses nesta luta pela sobrevivência do que as universidades estaduais do pobre Rio de Janeiro.

“A situação é ruim. Virou um jogo de sobrevivência. Não dá para depender do Estado hoje. Os cortes vêm de algum tempo já, mas nos últimos dois anos foi maciço”, resume ao PÚBLICO Leonardo Alves, professor na Universidade Federal Fluminense, perto da cidade do Rio de Janeiro. Com 41 anos, o investigador de engenharia mecânica, que fez um doutoramento na Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA), regressou ao Brasil em 2007 e não pensa em sair do país. Apesar de compreender os colegas frustrados que vê partir – e, diz, “são cada vez mais” –, Leonardo Alves acredita que tem por que ficar. Até porque, nota, está envolvido num projecto que não depende inteiramente do financiamento do Governo federal e é apoiado por entidades dos EUA, numa situação que o protege e que lhe dá alguma garantia de estabilidade. Algo parecido, adianta, acontece numa das áreas mais fortes da investigação brasileira que está ligada ao petróleo por causa do compromisso que as empresas multinacionais que se instalaram no Brasil assumiram no financiamento da ciência brasileira, como contrapartida.

Mesmo admitindo as variações regionais ou outras, de uma forma geral, o ensino superior no Brasil debate-se com renegociações de contratos nas universidades, suspensão de obras em curso e estratégias desesperadas para pagar salários ou mesmo facturas da água, luz e comunicações. Ou seja, debate-se com as contas para pagar o básico, garantir pelo menos o “feijão com arroz”. Há poucos dias o presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), Emmanuel Tourinho, declarou à Agência Brasil que o dinheiro disponível nas universidades federais apenas garantia o funcionamento até Setembro. “É imprescindível repor imediatamente os orçamentos das universidades federais. Estamos falando de um património dos mais valiosos para a sociedade brasileira e que está sendo colocado em risco. O prejuízo no longo prazo será incalculável”, denunciou o responsável, que é também reitor da Universidade Federal do Pará, citado pela Folhapress.

No campo da investigação o panorama é idêntico: há bolsas por pagar, projectos parados e cientistas a fugir do país. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência de apoio à investigação no Brasil, divulgou recentemente que atingiu “o tecto orçamentário” e só conseguirá manter o financiamento de projectos de investigação no país até Setembro. Num artigo do jornal “Estadão” publicado no início de Agosto, Mário Neto Borges, presidente do CNPq, é peremptório: “Acabou o dinheiro.” O caso, acrescentou, “é de urgência urgentíssima”.

No mês passado, os cortes do Brasil também foram notícia na revista Science que destacou o impacto desta política na área da astronomia, limitando o acesso dos cientistas brasileiros aos observatórios e a sua participação em projectos à escala mundial. No artigo de 17 de Julho, Bruno Castilho, director do Laboratório Nacional de Astrofísica, em Itajubá, afirmava que as reservas que possuía não cobriam sequer as contas de luz e água, quanto mais, desabafava, a participação do Brasil nos observatórios do Chile ou Havai.

No mesmo mês de Julho, o presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich, referia à BBC Brasil que os pesados cortes de recursos para a área da ciência e tecnologia (de 5800 milhões de reais em 2016 para 3200 em 2017, ou seja, passando de mais de 1500 milhões de euros para menos de 850 milhões) feitos pelo Governo federal estavam a levar a produção científica brasileira para um “estado terminal”, interrompendo projectos em curso, acelerando a “fuga de cérebros” e criando uma lacuna que poderá “penalizar o Brasil por décadas”.

Leonardo Alves concorda com esta previsão. “A ciência não se faz a curto prazo e estes cortes vão começar a ter um efeito gigante no futuro. Percebo que os cortes são necessários mas têm de ser redistribuídos. O investimento na ciência não pode estar sujeito a estas flutuações”, refere o investigador numa conversa ao telefone, defendendo uma estratégia clara, a longo prazo e apartidária para áreas “que devem ser prioritárias” como a educação e ciência. Porém, falta um plano. O problema da ciência é o problema do Brasil. “É estrutural. Qual é o plano de nação? O que se pretende construir?”, diz o cientista que, no entanto, está optimista. Afinal, constata, o Brasil já passou por tanta coisa e conseguiu sobreviver. “Certo?”

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