O medo e a cidade

Os acontecimentos extraordinários encerram ainda o potencial de revelar o quão segura era a nossa vida e o quão normal é uma certa dose de crime, velha ideia durkheimiana que os factos continuam a validar.

A vida nas cidades tem suscitado tanto entusiasmo como inquietação. O medo constrói-se de muitas maneiras e há hoje uma nova modalidade em construção que atenta contra as nossas liberdades mais triviais. A recente instalação de barreiras antiterrorismo em alguns pontos de Lisboa ilustra-o bem. É precisamente nos aspetos mais mundanos da existência que o medo toma forma. Habituados a um tipo de inquietação cuja escala é a da cidade, sentimo-la transformar-se.

A ameaça do terrorismo, provavelmente entre as mais paradigmáticas no cenário geopolítico do século XXI, instala-se como possibilidade no horizonte de expectativas do cidadão e, se a propósito da criminalidade comum já alguém tinha definido a insegurança como a probabilidade do imprevisível, a propósito do terrorismo esta probabilidade torna-se ainda mais imprevisível. Há porém um conjunto de observações bem testadas acerca da insegurança urbana a que se pode recorrer para esboçar aqui um exercício.

Primeiro, o medo organiza-se hierarquicamente. Escapando às práticas securitárias de que nos vamos munindo para nos colocarmos ao largo das ameaças que nos são familiares, a ameaça terrorista coloca em plano subalterno o crime predatório e faz regressar ao imaginário o crime de sangue, que não tinha parado de recuar em importância ao longo da modernidade.

É sabido que as pessoas tendem a forjar múltiplos arranjos no sentido de normalizar o quotidiano. São rotinas que, uma vez incorporadas, assumem um caráter mecânico ou maquinal. Ou seja, dispensam a consciência. Porém, não tivemos ainda tempo nem oportunidade para as construir a propósito do terrorismo.

Segundo, apesar de se distinguir bem daquilo que nos é familiar, o medo do terrorismo ancora-se precisamente no que parece constituir o fundo da inquietação em torno do crime predatório: a imprevisibilidade, a ausência de dimensão relacional, o anonimato, a aleatoriedade. A familiaridade permite redimensionar a ameaça. O que é estranho tende a ser sentido como mais perigoso.

Este esquema reflete a crença, nem sempre confirmada, de que o crime e a violência são excepcionais, cometidos por estranhos e engendrados no espaço público. O medo do Outro aparece, no caso do terrorismo, ainda com mais nitidez - como algo que atenta contra a nossa integridade física, mas também contra a nossa ordem civilizacional. O Outro é aqui mais radicalmente Outro, alguém que, militando numa cosmovisão estranha aos nossos modos de olhar a vida, está incrustado no miolo urbano onde se desenrola a vida comum.

Terceiro, é descortinado o caráter conjuntural dos receios colectivos. Eles são socialmente construídos e orientados: uma encruzilhada, um bairro, uma esplanada no centro da cidade revelam, para diferentes épocas, o modo como se desloca o topos do medo.

Os acontecimentos extraordinários encerram ainda o potencial de revelar o quão segura era a nossa vida e o quão normal é uma certa dose de crime, velha ideia durkheimiana que os factos continuam a validar - ou de como até no medo revelamos propensão para a nostalgia que diz dos dias que passaram tempos mais tranquilos do que aqueles que vivemos. 

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