A História e a memória

Os momentos maus da História não são para esquecer, são para recordar.

A História costuma ser escrita pelos vencedores. O poder de mandar também se estende à memória, mas quando o poder muda, também se altera a relação com o passado. Mas olhar para o passado através das condicionantes do presente raramente dá bom resultado. E, quando os saudosismos culturais se apropriam do passado, a História torna-se uma poderosa arma política. Num país jovem como os Estados Unidos, onde a guerra civil deixou lembranças profundas, o passado é uma ferida aberta. As estátuas que se concentram nos estados que eram segregacionistas foram erigidas para desafiar a ordem social que venceu a guerra e são um abuso constante aos povos que mais sofreram com ela. Gerações de crianças negras cruzam-se diariamente com estátuas de opressores a caminho da escola, que por vezes também tem o nome desses mesmos opressores, num acto de violência que desafia a lógica e questiona as conquistas sociais dos últimos 60 anos. A escravatura e o racismo continuam a ser temas por resolver na consciência cultural dos Estados Unidos e vão continuar a sê-lo durante anos, especialmente porque a “raça privilegiada”, constituída pelos brancos cristãos de classe média, está a ser ultrapassada na demografia. 

A destruição da estátua de Saddam em Bagdad, vista em directo em todo o mundo, foi considerada o momento mais simbólico da libertação do Iraque. O mesmo sucedeu em quase toda a Europa do Leste com a retirada de estátuas de Lenine nos anos seguintes à queda do Muro de Berlim, mas isso não impediu a manutenção de mausoléus e museus sobre as personagens do comunismo (como em Bucareste, Tirana ou Praga, entre muitos outros). No caso da Ucrânia, a relação tão próxima com a Rússia fez com que fossem precisas duas invasões para que a memória dos dirigentes moscovitas fosse retirada das ruas.

A relação que temos com a História é sempre complexa e nem é preciso sair de Lisboa para o recordar. Se mantivemos no mesmo sítio e com destaque algumas exaltações originalmente nacionalistas do regime salazarista, como o Padrão dos Descobrimentos, não aceitámos a perpetuação do nome da ponte que tinha o nome do ditador — e embora o nome revolucionário seja o oficial, poucos a tratam coloquialmente dessa forma, demonstrando mais uma vez que o poder de persuasão colectiva é o mais forte quando se trata de memórias e de heranças culturais.

Os momentos maus da História não são para esquecer, são para recordar — e os lugares certos são os museus e os mausoléus, que têm a responsabilidade acrescida de guardar a verdade histórica e discuti-la criticamente com os povos que a viveram. Retirar estátuas e outros símbolos não implica destruir o passado. Dá é maior exigência à construção do futuro.

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