Trump atravessou uma fronteira sem regresso?

A prudência tem levado a maioria dos analistas a não especular em torno da ideia de que será impossível a Trump completar o seu mandato. Aprenderam com a campanha a não o subestimar. Com o que aconteceu neste mês de Agosto, a prudência mantém-se mas mais por dever de ofício.

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1. Escrever sobre Donald Trump e o seu inesquecível mês de Agosto ou sobre as eleições alemãs, em que aparentemente nada acontece, enquanto Merkel caminha tranquilamente para o seu quarto mandato como chanceler? É este o dilema do regresso de férias. Aconteceu tanta coisa. É preciso recuperar o fio à meada. Talvez Trump seja uma escolha mais avisada. O que parece hoje ser verdadeiro amanhã pode ser um clamoroso erro de análise, só que a culpa não é nossa, é do Presidente americano. Percebe-se o desabafo do correspondente da BBC na Casa Branca, quando confessava um estado de total exaustão. Tudo pode mudar de manhã para a noite, através de um tweet, de uma demissão, de uma contratação, de um discurso. Não são apenas os correspondentes em Washington que têm a vida estragada pelo mais imprevisível Presidente dos EUA de que há memória. Vale a pena olhar, por exemplo, para as capas da prestigiada revista Foreign Affairs, nos quatro números que já publicou este ano. Janeiro/Fevereiro: Out of Order? The future of the international system, prudente. Março/Abril: Trump Time, inóquo. Maio/Junho: Present at the Destruction, invertendo o título das memórias de Dean Achson, secretário de Estado de Truman, Present at the Criation. Julho/Agosto: What Now? Trump next steps. O quinto volume olha para as reacções dos aliados (os dos EUA e os do Presidente, o que não é a mesma coisa). Vivemos no reino dos pontos de interrogação.

2. Mas fica uma vaga sensação de que o comportamento do Presidente americano acaba de ultrapassar um novo limite, que se pode revelar explosivo. Até agora, o que estava em causa era, essencialmente, a sua incapacidade para definir um rumo para a política externa: da Rússia à China, passando pela Coreia do Norte, pelos aliados europeus, pelas escolhas no Médio Oriente, pelos tratados de comércio rasgados ou em vias de o ser. A partir de agora, há um dado novo a juntar à equação, já de si complicada: as suas declarações sobre os acontecimentos de Charlottesville, onde uma manifestação de supremacistas brancos, alguns exibindo os símbolos nazis, outros os do KKK, que acabaram em violência e com a morte de uma jovem que participava numa contramanifestação contra o racismo. Trump desvalorizou a manifestação dos supremacistas, considerando que havia “boa gente” entre os nazis e os saudosistas do KKK e responsabilizando ambos os lados pela violência. Desta vez, houve qualquer coisa que levou ao distanciamento e ao repúdio, mesmo daqueles que estavam dispostos a aceitá-lo na Casa Branca, incluindo muitos republicanos no Congresso e alguns chefes da grande indústria americana. A novidade é a generalização da ideia de que Trump não tem, pura e simplesmente, as características mínimas indispensáveis para ocupar o cargo de Presidente do país mais poderoso do mundo. Outros presidentes americanos tiveram comportamentos erráticos nalgumas fases dos seus mandatos. Muitos tomaram decisões que foram nefastas para o mundo. Mas, por mais que se procure, é difícil encontrar um nível tão elevado de impreparação e de total desconhecimento do que se exige a alguém que ocupa a Casa Branca, mesmo que legitimamente eleito. Desculpar nazis e assassinos de negros é um aviso de que, afinal, pode valer tudo. O capuz branco com dois buracos para os olhos a servir de megafone a Trump na capa da Economist não está lá por facilitismo ou demagogia. É apenas um exemplo.

Trump ainda tentou corrigir as suas declarações sobre Charlottesville, dizendo que tinham sido deturpadas pelos jornalistas. O seu arrependimento não durou 48 horas. Em Phoenix, Arizona, num comício na quinta-feira passada, lá se foi a distinção entre os dois campos e a condenação dos supremacistas brancos. Aliás, o comício acabou por ser um ataque frontal a muitos republicanos do Congresso, que responsabilizou pelo fracasso total da sua agenda interna. As suas relações com o líder da maioria no Senado, Mitch McConnel, já andavam pelas ruas da amargura. A imprensa noticiou sem desmentidos que o senador teria levantado a questão da incompatibilidade entre Trump e a Casa Branca. O Presidente precisa desesperadamente de uma qualquer vitória no Congresso, porque até agora apenas averbou derrotas. Quer avançar depressa com um pacote fiscal para descer os impostos, mas esqueceu-se de explicar qual era. Quer que o Congresso aumente o tecto do endividamento, alegadamente para construir o célebre muro na fronteira com o México, que afinal não serão os mexicanos a pagar. Quando McConnel tentou, há dois dias, suavizar os seus desentendimentos com o Presidente, recebeu a resposta que provavelmente não esperava: “O único problema que tenho com Mitch McConnel é que, depois de o ouvir dizer durante sete anos que era preciso acabar e substituir [o Obamacare], ele falhou. Isto nunca devia ter acontecido.” Ontem, fez o que prometera no comício de Phoenix: perdoar o chefe da polícia (eleito) de um condado do Arizona, condenado no ano passado por ter ignorado uma decisão do tribunal que proibia a polícia de interpelar as pessoas na rua apenas por terem cara de imigrantes ilegais. Em matéria de arbitrariedades, estamos conversados. Haverá ainda alguém que consiga pôr alguma ordem no caos em que se transformou a Casa Branca?

 3. A derradeira esperança parece agora estar nos militares. Mesmo aqueles que não vêem com bons olhos a presença de muitas fardas a entrar e a sair da Sala Oval, e são muitos, se deixam levar pela ideia de que os militares talvez consigam pôr ordem numa casa onde a desordem impera. Trump já contava com dois generais prestigiados e influentes: James Mattis no Pentágono e H. R. McMaster como conselheiro nacional de segurança. Juntou-lhes agora John Kelly, outro general, vindo da Segurança Interna para chefiar o seu gabinete. Quando, na semana passada, Trump leu de fio a pavio um discurso sobre a mudança de estratégia no Afeganistão, houve quem já visse nisso a mão de Kelly. O Presidente reconheceu que o seu “instinto” sempre foi retirar imediatamente do Afeganistão. Acabou por concluir que não era a boa decisão. Como escreve a Economist, “Donald Trump rendeu-se ao conselho dos seus generais”. Levou tempo. O anúncio da nova estratégia para Cabul coincidiu com a saída de Steve Bannon, o doutrinário do nacionalismo extremo e do proteccionismo, que foi até agora o estratego preferido por Trump. Prometeu aumentar o número de tropas que ainda estão no terreno (cerca de 9000) e dar-lhe mais liberdade de acção. Acusou Obama de retirar antes de tempo no Iraque, abrindo as portas ao Estado Islâmico. No Afeganistão, abriria ainda mais as portas aos taliban. Esqueceu que, por ele, vinha toda a gente embora. O mais extraordinário é que a nova estratégia é uma espécie de “Obama plus”. Mais tropa, mais tempo. Falta tudo o resto. O reforço das tropas (que nem deve ser muito grande) não dispensa negociações diplomáticas. A presença de novos actores regionais torna-as cada vez mais complexas. A China, a Índia, o Irão e a Rússia jogam no mesmo tabuleiro. O Paquistão continua a ser um buraco negro onde convivem terroristas e armas nucleares. Mattis costumava dizer que uma redução dos meios do Departamento de Estado acabava sempre com um aumento dos gastos do Pentágono com munições. Rex Tillerson já reduziu o seu orçamento em cerca de 30%. De vez em quando, tenta corrigir o destempero do seu Presidente, como nos casos da Coreia do Norte ou da Venezuela. Mas ninguém pode garantir que amanhã Trump não volte à carga.

A prudência tem levado a maioria dos analistas a não especular em torno da ideia de que será impossível a Trump completar o seu mandato. Aprenderam com a campanha a não o subestimar. Com o que aconteceu neste mês de Agosto, a prudência mantém-se mas mais por dever de ofício.

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