Licenciaturas na secretaria para 20 mil terapeutas alternativos?

Há coisas inacreditáveis que são mesmo verdade e outras que parecem certas mas não resistem a uma análise crítica. O problema da falta de provas da eficácia e segurança das terapias alternativas tem sido ultrapassado com a criação de regimes de excepção por via legislativa: leis em vez de provas.

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Para a iridologia, a análise de características da íris permitiria identificar doenças em órgãos específicos Dulce Fernandes

No último mês de Junho foi aprovada pela Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior (A3ES) a primeira licenciatura em acupunctura em Portugal, no Instituto Politécnico de Setúbal. Esta aprovação não significa um reconhecimento científico da acupunctura, é antes uma consequência da Portaria 172-C/2015 publicada durante o governo dirigido por Pedro Passos Coelho, que define os requisitos para uma licenciatura em acupunctura. A portaria assenta em conceitos da tradição chinesa como o yin e yangqi, ramificações jing luo ou síndromes dos zang fu, como se estes traduzissem um entendimento real e comprovado dos seres vivos.

A acupunctura não tem um mecanismo plausível para funcionar e não apresenta provas da sua eficácia e segurança para nenhum problema clínico, como mostram sucessivas revisões da literatura científica. E a acreditação da primeira licenciatura em acupunctura não muda isso. Esta não decorre da ciência mas do poder político, como é aliás assumido no relatório da A3ES (“estrutura curricular e plano de estudos assentam nas quatro áreas formativas, indicadas na respectiva portaria”). A “respectiva portaria” é uma das cinco publicadas em Junho de 2015 e que definem os requisitos para as licenciaturas em fitoterapia, acupunctura, quiropraxia, osteopatia ou naturopatia.

Regimes de excepção

Em Junho passado foram também acreditadas sete licenciaturas em osteopatia. Também foram já feitos dezenas de outros pedidos de acreditação de licenciaturas em acupunctura, fitoterapia e naturopatia, apresentados por institutos politécnicos e universidades privadas.

Este avanço dos politécnicos e das universidades privadas criou obviamente um problema para as escolas de medicinas alternativas já estabelecidas no mercado e que não são instituições de ensino superior. A legislação contempla um período transitório em que os terapeutas alternativos podem ter acesso à cédula profissional, que é necessária para exercer a profissão, mediante uma análise do seu currículo. Esgotado esse prazo, uma licenciatura numa das terapias alternativas passa a ser a condição de acesso à cédula. Os cursos não superiores ficam assim esvaziados, pois é natural que os alunos prefiram os que habilitam para a cédula profissional.

Mas há esperança para as escolas alternativas. Reside num artigo da lei 71/2013, que regulamenta as terapias alternativas, de acordo com a qual estas escolas “dispõem de um período não superior a cinco anos para efeitos de adaptação ao regime jurídico das instituições de ensino superior, nos termos a regulamentar pelo Governo em legislação especial”. Essa regulamentação, que as escolas alternativas esperam que determine como se podem transformar em instituições de ensino superior, nunca foi publicada.

O jornal Destak, a 11 de Julho último deu conta da posição da Federação Nacional de Escolas de Medicina Tradicional, Complementar e Alternativa, que representa essas escolas de ensino não superior. “As licenciaturas já aprovadas abrangem cerca de 200 alunos”, segundo a federação. “Já as escolas de terapias não convencionais que constituem a federação, todas juntas, emitiram mais de 20 mil diplomas a alunos que continuam sem saber quando e como podem fazer a transição para a licenciatura”. Entre outros aspectos, as escolas pedem um efectivo “período de transição de cinco anos, para adaptação ao regime jurídico do ensino superior”. E que sejam dadas “condições para uma real e justa adaptação dessas instituições, nomeadamente quanto às garantias patrimoniais, corpo docente, investigação, acção social e instalações.”

As escolas de medicinas alternativas reivindicam licenciaturas administrativas para 20 mil pessoas que lá tiraram cursos, que não têm os requisitos para serem considerados licenciaturas. Querem também um regime especial que lhes permita transformarem-se legalmente em instituições de ensino superior, podendo passar a conferir (pelo menos) o grau de licenciado. Isto, dispensando-se de cumprir os requisitos de “garantias patrimoniais, corpo docente, investigação, acção social e instalações”, exigidas a qualquer outra instituição universitária. Para além de licenciaturas administrativas, são reivindicadas universidades administrativas. Tal como o resto da legislação das terapias alternativas, tudo isto consiste na criação de regimes de excepção para que estas terapias possam almejar uma respeitabilidade convencional.

Em contraciclo

Vários países, como a Austrália, o Reino Unido e a Espanha, que mais cedo deram passos no sentido de adoptar as terapias alternativas, ensaiam agora recuos, em face de estudos que demonstram a sua falta de eficácia e de segurança. Em Espanha, o Colégio de Médicos de Madrid anunciou em Maio que iria acabar com todos os cursos e actividades relacionadas com terapias alternativas, por falta de base científica. Já antes as universidades de Valência e Barcelona tinham fechado cursos de homeopatia, pela mesma razão. Em Julho, o serviço nacional de saúde do Reino Unido publicou novas directivas que determinam o fim dos apoios aos remédios homeopáticos, considerando-os “um mau uso de fundos escassos”. Nós andamos em sentido contrário.

 

Bioquímico e divulgador de ciência

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