Os desarrumadores

Se calhar são os lutos que se fizeram pelas coisas afinal não perdidas que trazem uma tão grande alegria em as reencontrar. É a única, parca consolação dos desarrumadores.

A desarrumação é um jogo em que se vão enterrando os tesouros até já não se saber onde estão. As pessoas desarrumadas têm a mania de dizer que a desarrumação é apenas aparente e que sabem exactamente onde cada coisa se encontra.

Mentira. Os verdadeiros desarrumadores odeiam desarrumações. De seis em seis meses ganham coragem e arrumam tudo. Tudo está acessível e à vista: o paraíso dos desarrumadores.

As coisas desarrumam-se enquanto dormimos, mudando de posição, enfiando-se dentro doutras, tornando-se invisíveis. Começa por uma superfície vazia. O espaço desafia-nos a pôr um livro em cima. Só um livro, fácil de localizar. Amanhã leva-se o livro para a estante de onde saiu. Só que não se leva. O livro fica ali. E não só: aquela superfície tornou-se no sítio daquele livro.

Depois põe-se outro livro por cima. Faz sentido. O sítio passa a ser plural: é o sítio dos livros. Passam-se seis meses e a superfície parece uma maquete da cidade de São Paulo. Não são só livros. Há caixas de vinho, latas, cadernos, jornais, correspondência, utensílios, canetas e sacos de plástico. O mais importante é que tudo está escondido. Levanta-se uma revista e encontra-se a água de colónia que se tinha perdido. É uma revelação. É como receber coisas novas pelo correio: seja bem-vindo aos objectos dos quais já se tinha despedido.

Se calhar são os lutos que se fizeram pelas coisas afinal não perdidas que trazem uma tão grande alegria em as reencontrar. É a única, parca consolação dos desarrumadores.

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