Assim se vê a força da lusofonia (sem cedilha)

Repete-se o calvário para os cabo-verdianos que querem estudar em Portugal.

O assunto não é novo. Mas eis que a mais recente edição do jornal cabo-verdiano A Nação traz uma outra luz sobre a relação dos estudantes cabo-verdianos com Portugal, sim, esses que anseiam rumar ao bulício lusitano para ali prosseguirem os seus estudos. Portugal trata-os bem? Maravilhosamente! Aligeira-lhes os processos, recebe-os de passadeira e ainda os louva por escrito na hora da partida! Porque a lusofonia é importantíssima, a língua portuguesa a todos une, língua de cultura e negócios, bênção dos céus e herança imorredoura dos nossos ancestrais! O quê? É o discurso errado? Não é a língua? Não são os laços? Nem as culturas? Nem os ancestrais?

Não, vamos pôr alguma ordem nisto.

Na verdade, o que há de novo sobre o amor que Portugal nutre pelos estudantes que navegam na sua língua é antigo. Veja-se este título: “Estudantes com dificuldade em conseguir vistos para Portugal”; e leia-se o início do texto a que o título se refere: “Os estudantes cabo-verdianos que vão ingressar nas universidades de Portugal estão revoltados com a dificuldade em conseguir vistos de entrada naquele país.” É de ontem? Do ano passado? Não, é de há seis anos. A reportagem foi publicada no jornal cabo-verdiano A Semana, na sua edição de 10 de Setembro de 2011. Pois agora, n’A Nação, lê-se isto: “Um pouco por todo o país [por Cabo Verde, entenda-se] alunos ‘choram’ por um visto para poderem prosseguir os seus estudos em Portugal”. Podem dizer: é certamente um mal-entendido. Foi isso, aliás, que disse em 2011 à reportagem d’A Semana um responsável português: era coisa para se revolver “ao mais alto nível, talvez por via do Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque esses estudantes não são nem emigrantes nem turistas.” Pois. Mas antes do alto nível, vamos ao baixo nível: em São Vicente, como demonstra numa fotografia A Nação, o serviço consular português funciona numa garagem. Seria o menos, podia até funcionar numa cave, ou num curral, desde que os funcionários ali atendessem com esmero ou pelo menos cortesia. Mas, a crer no que dizem ao jornal, os estudantes que lá vão queixam-se de ser tratados de maneira “desrespeitosa” e “grosseira”. Ah, a bela lusofonia!

Não é só isso. Pedem-lhes tal carrada de documentos que a mãe de uma candidata disse ao jornal, com ironia: “Tenho a impressão de que o serviço consular português é inimigo do meio ambiente, porque a quantidade de papel que exige é um atentado ecológico. O dossier da minha filha, para obter o visto, não vai ficar por menos de cinquenta páginas, assim como não fica por menos de dez mil escudos [cabo-verdianos, que correspondem a 90 euros] a quantidade de autenticações notariais que temos que fazer.” Pedem também, diz ela, o extracto bancário dos encarregados de educação. E apesar de ter capacidade financeira (comprovada) de manter a filha a estudar em Portugal, queixa-se de ainda ter de arranjar em solo português alguém que se responsabilize por ela. “Sendo que essa pessoa ainda tem de apresentar declaração de cidadão, comprovante de prestação de IRS, declaração de propriedade da casa ou de pagamento de renda e declaração de salário… Para quê tudo isto?” É fácil: porque entre nós existe a lusofonia, a língua portuguesa, esse elo que nos enlaça de forma imorredoura...

Discurso errado, outra vez? Será que não atinamos com isto? Vejam outro exemplo: alunos de Cabo Verde com pais a trabalhar no estrangeiro (Holanda, Itália, EUA) e com dinheiro para pagar aos filhos os estudos em Portugal. Serve? Não serve. Para o caso, queixam-se eles, “o dinheiro tem de partir de Cabo Verde e não de nenhum outro lugar do mundo.” Portanto, aqui, nem mesmo os ricos se safam.

Mas também para quê tanta insistência com Portugal? É um país simpático, é certo, agradável a turistas e afins. Mas estudantes?! Vade retro! Quem, pelos vistos, está a piscar o olho aos estudantes é o país de Teodoro Obiang. No mesmo dia em que A Nação dava três páginas e manchete às queixas dos cabo-verdianos que almejam estudar em Portugal e não podem, 17 de Agosto, uma breve notícia do e-Global (online) dizia que o Governo da Guiné Equatorial submetera ao parlamento o estudo de um acordo de concessão de vistos aos estudantes da CPLP “para promover o intercâmbio académico entre os países desta comunidade.” Este, se for aprovado, dizia ainda a notícia, dará aos candidatos “entrada livre sem qualquer obstáculo na Guiné Equatorial.”

Não é um paraíso, esta lusofonia?

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