O cigarro do motorista

A oferta diminui, a procura nem por isso. Em Agosto, os jornalistas do PÚBLICO contam histórias das carreiras mais concorridas nos transportes de Lisboa.

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O 728 chega a demorar uma hora e meia a dar a volta à cidade. vmc Vitor Cid

Uma vez, no Porto, contaram-me a seguinte piada: “Sabes porque é que os nossos autocarros se chamam STCP? Porque Somos Transportados Como Porcos.” Isto leva-nos a esboçar um sorriso ou até a dar uma pequena gargalhada, mas felizmente é um grande exagero. É compreensível o sentimento de frustração com os transportes que leva a piadas deste género – e enquanto forem só piadas e não insultos ou agressões, estamos bem.

Se a frustração do passageiro pode ser grande, há momentos em que a do motorista deve ser inimaginável. Em Lisboa, no colorido e complexo mapa das zonas da Carris, há onze carreiras que aparecem pintadas a cinzento. Significa que são linhas circulares, daquelas que atravessam a cidade de uma ponta a outra, percursos que raramente demoram menos de uma hora. Nesse lote está o autocarro 728.

O 728 é um dos percursos mais interessantes da capital. Simultaneamente, é um dos mais desgastantes. E não só para nós, passageiros, mas também – sobretudo? – para os motoristas.

Interessante porque, entre o Restelo e a Praça do Comércio e daí até à Portela, é como se andássemos em duas carreiras distintas. Na primeira parte, a partir de Belém, é um autocarro muito procurado por turistas, oferece ligação directa e (supostamente) rápida ao centro da cidade. Depois, à medida que se vai aventurando para a zona oriental, os turistas rareiam, mas o veículo não esvazia.

A mistura de pessoas enriquece a viagem. Aparecem, consoante a hora do dia, as mulheres que fazem limpezas em escritórios, os engravatados que passam o dia todo à secretária, trabalhadores da Lisboa que não pára lá por ser Agosto. Aos fins-de-semana, aparecem também grupos de pescadores amadores que andaram a tentar a sorte no Tejo. Mesmo sem peixe, vêm contentes, reencontram velhos conhecidos, conversam sobre o estado das coisas (é sempre mau, evidentemente).

Aos sábados e domingos ao fim da tarde lá pode dar-se o azar de apanhar um 728 dos pequenos, como se houvesse menos gente para andar ou o percurso não fosse coisa de monta, quando é hora e meia pelo menos de ponta a ponta. Em Belém entram os turistas já jantados, felizes por se terem regalado com um pastelinho de nata a rematar uma refeição que se adivinha farta. Entra também o casal de 70 e poucos anos, já se conhecem de ginjeira, conversam sobre banalidades. “Em chegando a casa, é uma sopinha, uma torrada e está feito.”

Aparece igualmente um tipo barbudo, muito corado, com uma garrafa de sangria na mão. Não é turista, é um finlandês que mora por cá há três anos e aproveita os domingos para se emborrachar. É ele mesmo que o admite, pois mete conversa com toda a gente. Está contente. “Portela muito bom viver”, diz já depois da Estação do Oriente.

Personagens de uma tragicomédia que nos desperta a atenção, mas que quase sempre desejamos que acabe depressa. Pelo tempo do percurso, pelas multidões que entram, pelas paragens a cada meia dúzia de metros, pelo tempo em que o autocarro fica retido em cada paragem onde seja preciso vender bilhetes. Quando o motorista acaba o turno e troca com um colega, vejo-o pela janela a sentar-se num banco, a puxar lentamente de um maço de tabaco e a acender um cigarro. Parece saber-lhe pela vida. Bem o merece.

Esta é a terceira crónica da série "Agosto sobre Carris", publicada semanalmente durante este mês

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