Europa: redução, partilha, sensibilidade e bom senso

O sucesso da área do euro depende também da capacidade de completar a união financeira.

No meu artigo do PÚBLICO a 8 de Junho de 2017, e na sequência do Livro Branco sobre o Futuro da União Europeia, defendi, no campo das políticas económicas, um conjunto de acções de curto-prazo, como primeiro acto de um plano de acção de fundo. A melhoria do funcionamento da União Económica e Monetária (UEM) não resolve todos os problemas da Europa, mas é uma condição necessária para garantir o objectivo último da política pública — melhorar, de forma equitativa, o bem-estar de todos os cidadãos.

Os progressos na coordenação das políticas económicas e fiscais, o início da União Bancária e a criação de mecanismos de resposta à crise — em particular, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) e as Outright Monetary Transactions (OMT) do Banco Central Europeu — foram passos importantes e decisivos. Mas foram, sobretudo, reacções. São construções imperfeitas e, por isso, ineficazes para fortalecer a Europa na medida do que é efetivamente necessário.

Para o curto-prazo, defendi nesse artigo regras económicas e orçamentais que incentivem a acção e que estimulem a criação de buffers para dias menos bons, incorporando no processo de decisão os interesses da área do euro enquanto área comum. Regras claras, simétricas e ajustáveis, que se aplicam a todos.

Mas qualquer acção de curto-prazo não anula a necessidade indelével de pensar e implementar uma estratégia de longo-prazo, coerente e abrangente, que permita melhorar os actuais mecanismos de prevenção e partilha de riscos. E aqui reside um equívoco fundamental do processo de integração: o de que estamos perante um processo necessariamente sequencial, em que temos que concluir a redução de risco para, depois, avançar com a partilha. No entanto, o primeiro é um processo contínuo e inesgotável, pelo que tal formulação serve apenas o propósito de adiar indefinidamente o segundo. Ou, dito de outra forma, adiar indefinidamente uma União Económica e Orçamental funcional, o que, mais cedo ou mais tarde, terá consequências gravosas e potencialmente irreversíveis.

É neste contexto que podemos (devemos) encontrar no actual momentum político e no “Brexit”, independentemente até da sua efectiva concretização, o impulso para avançar pari passu em duas frentes: a da gestão de ciclos económicos e a de correcção de desequilíbrios estruturais.

A melhor gestão dos ciclos é essencial na medida em que permite uma política monetária mais eficaz e dota os países de um instrumento fundamental para lidar com choques que, de outra forma, são muito difíceis de gerir, num contexto onde a política monetário é comum, onde não existe instrumento cambial e onde a política orçamental está sujeita a um conjunto apertado de regras.

A principal crítica a este mecanismo de partilha prende-se com o risco moral que lhe está associado, na medida em que pode induzir comportamentos oportunistas — um país terá menos incentivos a evitar uma crise se souber que as consequências serão suavizadas e partilhadas com outros. Tendemos a levar este argumento longe demais. Na verdade, a utilização de um mecanismo de estabilização macroeconómica ao nível central é apropriado nas situações em que os choques são maiores — e onde é mais difícil sustentar o argumento do risco moral pela dimensão do ajustamento necessário —, porque é também nestes casos que as chamadas externalidades são maiores (i.e., as consequências sobre terceiros que não são levadas em consideração nos processos de decisão) e onde a política monetária tem menos poder, por se encontrar potencialmente esgotada.

A criação de um subsídio de desemprego europeu, incremental aos sistemas nacionais, tem ganho particular destaque. O mérito desta proposta, sobretudo na sua dimensão simbólica, tem que ser avaliado também pela convergência das regras dos mercados de trabalho nacionais que lhe estaria subjacente, convergência essa que não considero exequível ou sequer desejável, tendo em conta as legítimas preferências nacionais.

Mas o desemprego, enquanto medida, é o melhor critério para definir, a nível central, as situações em que o mecanismo de estabilização macroeconómica deve actuar, por ser claro e transparente, em clara oposição às alternativas mais opacas e complexas como o hiato do produto. Na prática, este mecanismo deve basear-se em contribuições nacionais, que serão negativas em caso de crise económica. Pode também ter por base um imposto europeu — por exemplo, um imposto sobre lucros, sobre transacções financeiras, fiscalidade verde, etc. —, evitando assim a noção de contribuições nacionais directas, perigosa na medida em que perpetua a Europa do deve e do haver. Em qualquer dos casos, países que enfrentem uma crise serão dotados de fundos a ser aplicados em despesas anti-cíclicas, onde se incluem subsídios de desemprego mas não só. A formação de capital humano ou outros investimentos públicos devem também ser possibilidades. Aliás, é fundamental que a aplicação dos fundos seja uma decisão nacional, tendo em conta as prioridades, necessidades e preferências das diferentes realidades locais.

A ideia de que tal formulação não é politicamente aceitável prende-se com a avaliação dos seus efeitos no actual contexto económico. No longo prazo, um mecanismo dependente do ciclo não cria transferências permanentes e não é, por isso, um mecanismo de redistribuição. No entanto, pode argumentar-se que as economias mais frágeis são mais suscetíveis a crises e a crises mais profundas. Sendo verdade, é necessário perceber as causas da fragilidade. Deficiências estruturais da responsabilidade dos governos devem ser eliminadas (ou suportadas a nível nacional) e a participação no fundo terá sempre de ser condicional num conjunto de critérios mínimos. No entanto, economias mais pequenas — algo imutável pelas autoridades nacionais — são, por natureza, mais instáveis e mais suscetíveis a crises mais prolongadas. Temos que decidir, enquanto união, se estas transferências são inaceitáveis. A meu ver, não são.

Além da gestão dos ciclos, é fundamental dotar a UEM de capacidade para lidar com desequilíbrios macroeconómicos e orçamentais crescentes, muitas vezes ligados a desequilíbrios estruturais. Neste plano, retomo a ideia da partilha progressiva de soberania. Países com desequilíbrios, positivos ou negativos, suficientemente grandes — e novamente será essencial definir, com critérios claros, o que se entende por “suficientemente grandes” — devem agir, ajustando as suas políticas nacionais.

A condicionalidade pode e deve ser reforçada — depois, mas sobretudo antes, da materialização dos riscos — através do aprofundamento do fundo europeu para o investimento e com base em capacidade de endividamento própria, alicerçada em garantias nacionais (o que, além dos benefícios directos, fornecerá um activo seguro aos investidores, com méritos próprios).

Neste sistema, a inacção nacional traduzir-se-á numa transferência progressiva de soberania para o centro, transferência essa que deve beber na aprendizagem recente de resolução de crises na Europa, nomeadamente quanto à necessidade de estabelecer prioridades e ajustar o passo aos desafios enfrentados por cada país, fazendo uma adequada sequenciação e agrupamento de medidas, minimizando os seus custos e maximizando benefícios, pesando questões de eficiência e equidade em simultâneo e respeitando as preferências nacionais.

Naturalmente, o quadro institucional existente não é compatível com o aprofundamento da integração aqui descrito. Estas propostas implicam um Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) reforçado, a que podemos chamar Fundo Monetário Europeu, e que necessitará de mecanismos de decisão mais céleres e com reforçada legitimidade democrática.

No actual contexto, o MEE depende do Ecofin, i.e., de ministros nacionais que zelam pelos interesses individuais dos seus países. O resultado é um processo de decisão moroso e imprevisível. É por isso necessário criar responsabilidade política ao nível central, por exemplo na figura de um ministro das Finanças europeu, que zele pelos interesses da área do euro no seu conjunto. Além disso, as decisões do MEE, tomadas por um conselho executivo, devem carecer de aprovação do Parlamento Europeu, assegurando uma maior legitimidade democrática, legitimidade que se deve traduzir também na prestação de contas aos parlamentos nacionais.

A necessidade de melhorar a governação económica e orçamental é indelével, mas o sucesso da área do euro depende também da capacidade de completar a união financeira, através de mecanismos comuns que garantam uma rede de segurança de último recurso e dos avanços na união de mercados de capitais. E depende, sobretudo, da capacidade de integrar no processo de decisão a dimensão social, um elemento primordial da identidade europeia.

Todos estes progressos dotam a área do euro dos instrumentos necessários para um futuro mais próspero. Mas o legado da crise permanecerá e deixará os países e a própria união vulnerável. Não será possível seguir em frente sem encontrar soluções — também europeias — para a dívida privada e para a dívida pública.

A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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